28 agosto 2006

deuses na rua

deuses que nas ruas são pardos
devem ser conhecidos por nomes mais antigos

lembro-me, recordo-me
milhas mnemônicas ao entardecer

poente, riso doente, quanta porcaria
lixo da cidade, grandes caminhões
que de noite rondam a meia noite
entopem o meio dia
assoviam surdos seus gases mecânicos
as rodas são maiores
que as crianças nas calçadas

percebo a cidade agora
pereço, pareço um doido, cidadão
e a cidade grande é tamanha
e as ruas curvas, os montes de banha
das montanhas no horizonte
e as populações de mendigos
vêm todos os dias até a janela
oferecer um espetáculo único
para o sujeito oculto que não fala
e sorri diante de tanta saudade acumulada.

25 agosto 2006

Todos Incomodados

Fumar incomoda muitas pessoas. Mas o que mais incomoda todas as pessoas são as outras pessoas.

Elas gritam, descontroladas, nos restaurantes. Conversam aos berros. Maltratam os garçons na sua frente. Ouvem suas músicas em alto e bom tom dentro dos seus carros iguais. Ficam horas nos caixas eletrônicos dos bancos onde cada gerente cria uma fila de espera de indivíduos confusos que espera, com paciência, que o tal gerente acabe seu telefonema.

Esses gerentes vivem pendurados no telefone, atendendo minuciosamente um cliente que, ao contrário de você, nem se deu ao trabalho de ir até lá. O gerente de banco, enquanto telefona, nunca te olha. Eles devem ser treinados assim.

O guarda de banco pede que alguém volte atrás da linha amarela mas, antes de terminar a frase, a pessoa já foi, sem passar da linha amarela e já está voltando, lutando contra a porta giratória que não vai girar a menos que ela fique, por um momento, parada atras da linha amarela.

Essas pessoas nunca esvasiam as bolsas, os bolsos, do metal que carregam. Não da primeira vez. Botam um chaveiro na caçamba da porta. A porta não abre. Botam um celular. A porta não abre. Botam uma mini-câmera digital. A porta não abre. Botam um estojo de maquilagem, um anel, moedas. Do lado de dentro alguém quer sair. Toda vez que o cara tenta entrar, o outro tenta sair.

As filas nunca estão formadas de acordo com as linhas desenhadas para orientação. As pessoas mais pobres entendem a fila como algo que deve se estender a partir das costas de alguém. Não importa pra que lado essa pessoa esteja virada.

O balcão de informações não tem ninguém trabalhando lá. Quando a fila nos (três) caixas começa a engrossar, dois imediatamente se levantam e somem pela portinha dos fundos, levando um monte de papéis, cada um. Fica só aquele, de óculos, meio abobado. Aí chega um senhor bastante idoso e pouquíssimo amigável. Quer saber quanto tem na sua conta, mas esqueceu qual conta é.

Na hora do pique máximo o pessoal da manutenção resolve trabalhar e inutiliza, por prazo indeterminado, três caixas eletrônicos, dos cinco que existem. Mas um deles é só para emitir cheques.

Saio do banco e acendo um cigarro ali mesmo, na calçada. Um tomador-de-conta de carro vem pro meu lado e pede fogo. Fumamos os dois, em silêncio, em mútuo entendimento, observando as pessoas que saem pela porta giratória. Olham pra gente e desviam, rápidas, o olhar. Elas não fumam.

16 agosto 2006

Uma oração


Somente meu estado de espírito não será suficiente para a descida no escuro, a viagem no escuro - uma estrada, horizontal como a dúvida, estendida por quilômetros no frio - partiremos à noite, sobre a terra e chegaremos amanhã no mundo; eu e meus comparsas, todos os canalhas, os cafajestes e as dívidas serão pagas e os mortos recolherão em nossas memórias as frases que os mantêm ativos:

"...Ruby era doente, cara" ;
"..Ramón tinha uma merda de direita";
"...aquela polaca do bar não levantou os olhos quando a gente parou lá, mano, que ela tava com medo de ver o Walter de novo";
"...eu falei com o Spencer pra deixar a maluca em paz, mas ela tava procurando ele e trouxe aquele merda do xerife";
"...se o Espiga tivesse por aqui cê num ia tá rindo, não com esses dentes todos"

As rotas estão traçadas e trago a revelação, eu que não sabia coisa alguma sobre a distância entre dois horizontes - as folhas da relva apontam, num movimento vago, a direção do vento e nós vagamos atras de alguma direção possível, era ontem - sei agora que uma única vez você disse meu nome, me chamou, no escuro, por meu verdadeiro nome e isso foi mais do que suficiente para que eu me movesse, para sempre, através desse espaço em que cada pedra, grão, folha, poeira reverbera seu nome submerso, Senhor dos caminhos, Senhor do tempo sobre os caminhos, Senhor das coisas distantes que se aproximam.