21 setembro 2006

Lendo Harold Bloom


Harold Bloom, aparentemente, leu tudo o que há para ler. Durante mais de meio século Bloom leu incansavelmente. Seus autores favoritos são também, em grande parte, os mais famosos e devemos agradecer a Bloom o fato dele, no seu incansável ofício de leitor, resenhar para nós tais autores famosos e, entre esses, tantos extremamente cansativos.

A maldição do crítico literário é que ele, mais do que qualquer homem de letras, tem que estar vivo, mesmo que de forma figurada. O bom crítico literário lança para o futuro seus limites, conseguindo às vezes abranger uma era ou predizer uma nova. Mas não pode, ao contrário do escritor, sobreviver ao tempo.

Obviamente ele não poderá, depois de morto, fazer a crítica dos novos escritores que surgirão e das estranhas modalidades que a sensibilidade literária trará à tona. Com o tempo, forçosamente, toda crítica literária tende ao obscurantismo. O prisma gira lentamente e filtra outro espectro, o que vale dizer que toda percepção literária muda com o tempo.

Bloom escreve sobre o Dr. Johnson e pula por cima de outras críticas, contemporâneas, pessoas tão sagazes como Edmund Wilson ou George Steiner, que foram leitores poderosos e escritores idem. Eleger Samuel Johnson como crítico preferido implica em compartilhar o mesmo prisma do grande crítico mas, para nossa tristeza, há uma tristeza latente no que Bloom escreve. Talvez esse prisma tenha sido quebrado duramente pela passagem do tempo que produziu, por exemplo, duas grandes guerras e moldou, à força, uma nova e não necessariamente melhor, sensibilidade.

Bloom procura criaturas e valoriza, justamente, as criaturas mais perfeitas, ou seja, as mais consistentes. Ou seja, Bloom ama o teatro e, além do fato de confundir, sem aviso prévio, teatro com literatura, não se dá conta das limitações do primeiro ou não se dá ao trabalho de analisar isso.

Teatro é obra literária, sem dúvida, mas é, no máximo, gênero literário. Exige-se alguma explicação para colocar um autor teatral ao lado de um romancista. Bloom faz o mesmo que Manuel Puig, escritor menor, argentino, que apenas troca a ordem das coisas e confunde literatura com teatro. Por falar em Argentina, Bloom tem dificuldades em assimilar Borges, talvez por que Borges seja o antiteatro, entre outras coisas.

Bloom procura, quase religiosamente, os deuses criadores através de suas criaturas. Shakespeare, sob esse aspecto, é merecidamente o criador supremo. Nada se compara à extensa, variada e viva galeria de personagens criada pelo bardo. Quanto mais poderoso é o criador, mais vida empresta a seus personagens de forma que estes já não são seus arautos, o criador não fala através deles porque eles têm vida própria e são arautos de si mesmos.

Isto é, sem dúvida, um feito notável em literatura e Shakespeare, segundo Bloom, é o mestre absoluto. Temos que concordar. Sob esse prisma, Shakespeare é incomparável. Mas existem outros fatores e, alguns, alheios à capacidade individual do escritor. O problema da transposição entre idiomas é assunto longe de ser resolvido. Shakespeare não resiste bem ao português, principalmente no Brasil. O discurso às vezes hermético, às vezes parabólico de Shakespeare não encontra apoio no sub-português falado no Brasil, obrigando os tradutores a um exercício de retórica quase incompreensível. A culpa, evidentemente, não é de Shakespeare, mas a distância de sua alta retórica para a nossa simplificada fala é um abismo difícil de ser transposto. Bloom se engana ao afirmar que Shakespeare é absolutamente universal, no sentido de ser apreciado igualmente no mundo inteiro. Não é não. O povão mundial talvez aprecie apenas o fato de que suas peças são, em grande parte, rádio novelas baratas. Mas a outra dimensão, a dimensão verbal de seus personagens, que está acima do enredo dessas peças e que constitui a arte quase insuperável de Shakespeare, nos escapa. Não temos, pelo menos hoje, no Brasil, um idioma capaz de refletir o brilho verbal de Shakespeare.

Grande parte (para não dizer a totalidade) da literatura dos séculos precedentes ao século vinte é composta de solilóquios, circunlóquios, hipérboles, palavras chatas e excessivas, volteios e imprecisões – a insustentável lerdeza do ler e do escrever é o título do ensaio (que Milan Kundera não poderia produzir) sobre a chatice sem par da literatura européia até o séc. XX. Há exceções, claro. Contam-se nos dedos. Mas a grande maioria dos autores assombra, como o fantasma de Hamlet, aquela outra e verdadeira minoria silenciosa: nós, pobres leitores.

Quem já leu, ou pretende ler Em Busca do Tempo Perdido? A piada é cruel e de mau gosto, mas necessária: ao final das dez mil páginas constata-se o tempo perdido. Não há nada que Proust possa nos oferecer, hoje, e a inegável maestria da escrita, mesmo em traduções ruins, não é suficiente para sustentar o volume excessivo da deformidade sentimental da obra. Proust e seus personagens são de um outro mundo, distante, doentio e excessivamente melancólico. Um mundo enfermo. Não que o mundo, depois de Proust, seja mais saudável. Mas é mais dinâmico e não comporta mais as prostrações de Proust (o trocadilho é inevitável: proustrações).

Kafka ainda nos surpreende com a grande barata. Mas o que se inicia como um choque, a transformação de Gregor Samsa, se revela apenas um artifício para outra litania desesperadora sobre o Pobre Coitado, o único personagem kafkaniano. Kafka escreveu páginas sobre seu único tema, o Pobre Coitado. A força de Kafka vem do modo como ele escreve sobre esse tema e não do Pobre Coitado em si, que é uma das pragas mais insidiosas da literatura européia, ou ocidental, se quiserem. Há quem goste.

Werther, o jovem de Goethe, raia o retardamento mental. É difícil entender Werther, não a especulativa ingenuidade ou os previsíveis estados emocionais do personagem, já que entendemos imediatamente o que ele demora a se dar conta, mas a pieguice inerente como pilar central da obra. Sem aquela pieguice não há Werther e é difícil acreditar nisso.

Bloom é um tipo de leitor entre vários outros tipos. Quantos tipos existem? Não sei responder a essa pergunta, mas percebo que Bloom percebe e busca o conteúdo das obras que resenha. Na verdade, essa é a forma mais comum de leitura. Procura-se o que o autor está dizendo, o que ele tem a dizer, digamos, sua filosofia. Mas existe aí um problema, não solucionado. Existe outra coisa na literatura, fundamental, pela qual Bloom passa batido. Essa coisa define cada autor, cada livro, de forma que dois autores, usando o mesmo idioma, escrevendo a mesmíssima história produzirão obras tão diferentes entre si quanto dois flocos de neve da mesma nevada vistos ao microscópio.
Cada autor tem seu estilo, e estilo é quase tudo em literatura. Implica escolha das palavras, construção das frases, encadeamento das frases, encadeamento de idéias, ritmo, cadência, dosagem de ironia, humor, mau-humor, ou o que mais exista num texto. É necessário não confundir a eminência literária de um autor, isto é, seu estilo ou a forma com que ele escreve, com o que ele está dizendo. E, afinal, o que os autores estão dizendo? Nada de mais, na maior parte das vezes.

Ulisses, de James Joyce, que deixou os críticos de língua inglesa embasbacados, é exercício de estilo. Traduzido para o português (conheço apenas a versão de Antonio Houaiss) vira prosa de adolescente. Claro, um adolescente que tem futuro na carreira literária, ou seja, talentoso, mas ainda assim, adolescente. Ou isso ou Joyce também não sobrevive ao português.

Li mais sobre Ulisses do que me lembro do livro em si. Li sobre a estrutura rigorosa, ou o rigor estrutural (sic) da obra, li sobre a recriação da Odisséia, sobre complexidades e/ou profundezas psicológicas, fluxo dissertativo do inconsciente, etc. Bobagem. Joyce, com o perdão da palavra, era jovem demais, a despeito da idade cronológica. Há uma ingenuidade, comovente, em Joyce. Assim como em Charles Dickens, que a crítica anglo-saxônica insiste que seja ouvido (lido). Mas quem pode ler e levar a sério uma novela mexicana?

Bloom trata, por exemplo, Faulkner, Garcia Marques e mesmo Borges com reserva. Mais ainda esses dois últimos. Os três têm em comum o fato de que não são grandes criadores de personagens. Na verdade eles não se importam muito com isso. O personagem principal de Faulkner é uma espécie de divindade, talvez do tempo, um anjo do destino, que, evidentemente, não está na história mas paira sobre cada linha escrita e força o leitor a enxergar sob seu prisma. Os personagens de Garcia Marques são, praticamente, uma só pessoa. Falam da mesma forma e agem igualmente. Homens e mulheres, somos todos iguais e, de certa forma, isso ajuda no contraste com a fantástica realidade em que vivem, essa sim, sua grande, rica e imprevisível personagem. O personagem de Borges é a própria idéia central do conto, quase sempre surpreendente e complexa. Bloom, admirador radical de Shakespeare, espera sempre encontrar algum Hamlet perdido por aí. Dá a impressão de que não vai desistir dessa busca, ainda que a literatura, como no caso, possa apresentar novos parâmetros.

17 setembro 2006

Toy Guitar Blues


Essa é a guitarra de brinquedo que eu usei no Toy Guitar Blues, um blues (também de brinquedo) que está lá no meu canal, Boo Band, na página do Podcast1. Tem algumas outras músicas lá. Resolvi registrar a imagem dessa guitarrinha antes que alguma coisa aconteça com ela (já está quase quebrando) e acabe indo pro lixo.