17 outubro 2010

Óia só, Lady Glassworth

Bem, eu estava dirigindo e me ocorreu a resposta à questão: por que o motorista comum pode virar uma besta enraivecida no trânsito?
Em casa ele mal consegue dizer não pra sua mulher, que costuma dirigir um automóvel de forma mais civilizada, como dizem as estatísticas.
(Mas ela também é capaz de infernizar um simples café da manhã com uma eficiência que vem diretamente da cozinha de Satanás. Ou seja, na capacidade de imitar as bestas infernais a mulher ainda ganha do homem.)
Mas isso é um outro assunto. O homem, estou falando do homem comum, se é que isso existe, é possuído por bestas infernais principalmente no trânsito, quando dirige.
A pergunta é: por que um pacato cidadão se transforma em uma besta-fera ensandecida, ao volante da porcaria do seu Fiat 1.0?
A resposta tem a ver com a memória atávica, mesmo que o cara seja atualmente um modelo de frio discernimento, tipo um burocrata paulista.
Imagine só, você está lá na Europa, mil anos atrás, sei lá, e se prepara para um esporte bem popular na época: aquele negócio da justa, da competição entre cavaleiros.
Você tem um pedaço de pau maciço, uns três metros de comprimento. Na ponta tem um ferro pontudo incrustado. Aquilo pesa bastante, tanto que vem com uma correia pra você dependurar no ombro pra poder, mais ou menos, manejar a lança.
'Manejar' é forma de dizer. Você consegue, no máximo, apontar o espeto gigante contra seu adversário. É isso aí, você tem um adversário com um espeto igual ao seu e que virá pra cima de você montado num cavalo.
Você também tem um cavalo e você é içado e colocado em cima dele. Note bem, você é 'içado' porque não pode montar sozinho, já que está vestindo uma armadura de ferro que pesa por volta de cinquenta quilos ou mais. E o cavalo é daqueles grandões, de canela grossa; um cavalo necessariamente cavalar, já que tem que suportar seu peso, a armadura, o escudo (você também tem um escudo grandão) e o peso da própria armadura equina.
Muito bem, você já está em cima do cavalo. A sela tem um encosto traseiro, pra você não virar pra trás. Você tem que estar muito bem equilibrado naquilo porque senão, se você tombar demais pros lados ou pra trás, você não consegue voltar à posição anterior.
Ok, eles conduzem o cavalo, com você em cima e te colocam numa espécie de corredor. Do outro lado do corredor tem um cara de armadura que também mal consegue se mexer, montado em outro cavalo.
Aí eles dão um sinal. Você mal tem tempo de abaixar a viseira do seu elmo. Claro, você tá usando um elmo de ferro e ele tem uma viseira, que você baixa sobre os olhos. Pode ser uma espécie de grade, podem ser dois furinhos numa peça de metal. Quer dizer, você não está vendo muita coisa na sua frente. Você aponta sua lança, na base do cálculo de onde o adversário estava e, enquanto isso, o cavalo desembestou ao longo do corredor (esse tipo de cavalo adora fazer isso), indo loucamente ao encontro do outro cavalo, que vem bufando da mesma forma desembestada.
A ideia geral da coisa é que você pretende desmontar, perfurar, quebrar, partir ao meio o seu oponente, na base do impacto puro e simples. Mesmo sabendo que ele tem as mesmas perspectivas em relação a você.
Vocês avançam mais ou menos a quarenta quilômetros por hora, cada um, um contra o outro. A porrada vai ser a oitenta por hora, pros dois. Você talvez se lembre, nos segundos finais antes do impacto, que Lady Glassworth está assistindo, com aqueles olhos doces, e você está levando seu lencinho perfumado amarrado com um lacinho delicado na sua manopla direita.
Você ainda pensa, numa última ebulição de adrenalina e testosterona misturadas que, se escapar dessa, vai traçar Lady Glassworth na marra, quer ela queira, quer não.
Uma experiência dessas, devo dizer, fica gravada no cérebro para sempre, se você sobreviver. Você pode morrer. Sem dúvida você morre algum dia mas os genes dão um jeito de transmitir essa experiência pro seu filho. Seu e da Lady Glassworth. E vai passando de geração em geração com alguma perda imagística mas intocada em sua essência.
E agora você dirige um carro nas ruas de uma cidade vagabunda e sem escrúpulos. Tudo bem, você estava em casa, tranquilo, sonhando com as coelhinhas da Playboy, assistindo o noticiário, o futebol. Ou durante o almoço, saboreando um macarrãozinho básico com cerveja e tal e coisa. Aí você tem que pegar o carro e sair pra resolver um pepino qualquer.
Você põe a roda na rua e uma região do seu cérebro percebe que essa porra de automóvel é uma coisa mortal, véio. Porque é uma coisa mortal mesmo. São milhões de mortes por ano em acidentes de trânsito no mundo todo.
Seu cérebro ou seus genes não se enganam como você se engana com as ONGS, com a turma do deixa disso, com o politicamente correto ou com a civilidade envernizada das redes sociais da internet.
Então: você tá todo bonzinho e tal. Mas na rua, dentro do carro, você sai pro pau. Óia só, Lady Glassworth, espere por mim porque eu vou sobreviver, minha princesa.

15 outubro 2010

Wandeir e seus problemas

Penso em Wandeir e seus problemas, a começar pela minha dificuldade em lembrar seu nome. Porque eu preciso dos serviços dele. Estou construindo uma casinha na beira de um lago e Wandeir tem um ferro-velho, um topa-tudo - eu não sei definir a razão comercial da coisa - e Wandeir vende coisas que eu preciso.

Coisas usadas, vigas usadas de madeira e mesinhas de ferro usadas, tambores de plástico e grades de portão. Coisas pelas quais eu pagaria uma pequena fortuna nas boas casas do ramo e nas quais eu seria tratado como uma rameira velha na hora de pechinchar. Pago algo em torno de 40 reais por uma viga de madeira de 5 metros de comprimento e que pesa 150 quilos, no mínimo. Um pedaço de peroba pura, sei lá, escurecida pelo tempo e pela indiferença humana (não resisti à frase de efeito, sorry).

Essas árvores quase não existem mais e na Europa você pagaria uns 1000 euros por um pedaço de paraju muito menor. Essas madeiras estão em extinção e eu não me importo nem um pouco em ter um exemplar sustentando a quina do telhado da minha modesta varanda, perto de um lago muito calmo. O espírito da árvore original talvez se sinta mais confortável na minha varandinha que dá para uma mata, que não é nenhuma amazônia, mas é mato e tem lá seus curupiras e, quem sabe, seus elfos imigrantes.

Mas Wandeir é um problema brasileiro sem solução para mim. Wandeir, Wantuir, Josilene, Joiciene e Joiciane, Edirley e Edirlene, e Josimar e Jalmir e Wesleison. Eu simplesmente não consigo me lembrar dos seus nomes, saber quem é quem e qual a diferença que provavelmente existe entre eles. Mas dirigem caminhões, levantam muros e lavam roupas - aprendi com Ivailson a arte da mistura para o concreto de pisos, feito no olhômetro e, onde o engenheiro hesita, Ivailson concretiza logo. Menciono Gaudi enquanto o concreto se espalha lentamente pelo chão, mas nem Ivailson ou o engenheiro , que se chama Jesuino da Silva, parecem sequer entender o que eu disse. Me olham de outro planeta, esse que fica dentro das sombras de um Brasil; invisíveis os dois sob o manto da invisibilidade desses nomes surreais.