19 junho 2006

Lennon, em seu legítimo direto.

Outro dia eu estava procurando por um livro que eu tinha (agora sei que não tenho mais), Um Atrapalho no Trabalho, de John Lennon. Em inglês é A Spaniard in the Works. A tradução é de Paulo Leminski e o título capta bem o sentido geral, mas eu prefiro a do Millôr Fernandes que achou: Um Estranhol no Trabalho, que soa mais próximo do original que, na verdade, é intraduzível. A palavra ‘works’, no caso, pode significar trabalho ou máquina porque Lennon usou uma expressão antiga, (creio que do começo do século passado, Revolução Industrial), significando alguma coisa que se faz de errado com as máquinas e introduzindo um intruso estrangeiro no meio, um espanhol atrapalhado. Qualquer inglês percebe o trocadilho de imediato, a sonoridade semelhante e o sentido transformado. A gente tem que ficar deduzindo, claro. Eu mesmo pensei em coisas para o título como Uma Extranja (ou Extra Ana) em Grenajem, mas ficou tão bizarro que passou do ponto.
Pouca gente sabe que Lennon era um escritor. Ele próprio não pertencia a esse grupo. Nunca se levou a sério. Escrevia 'desde sempre' e, como ele mesmo disse, seus dois livros eram uma coletânea de coisas que ele rabiscava desde a escola secundária. Também admitia não ter paciência para uma obra de fôlego maior. Mas o que, afinal de contas, seria um fôlego maior? O livro de Lennon respira tão bem quanto na época em que surgiu, em meados da década de sessenta. Na verdade foram dois livros: o já citado A Spaniard in the Works e o primeiro, In His Own Write, título que é outro trocadilho, usando a expressão ‘in his own right’, que, em português, significaria algo como ‘em seu legítimo direito’. ‘In his own write’ tem a pronuncia semelhante mas quer dizer ‘na sua escrita particular’, algo assim. Ele ainda é autor de um terceiro volume, póstumo, Skywriting by the Word of Mouth. Esse eu não li, e talvez nem leia nunca, porque nele está a sombra irritante da Yoko Ono.
Depois de sua morte, John Lennon foi transformado numa espécie de ícone parecido com a pomba da paz. Lennon engano, ledo engano. Pra começar, ele próprio nunca teve isso, paz. John era órfão, na pior espécie de orfandade conhecida: foi abandonado pelos pais. Perder os pais já é uma experiência terrível pra qualquer criança; ser rejeitado pode ser pior. Por volta dos treze anos de idade soube que sua mãe morava mais ou menos perto de onde ele próprio morava, a casa de sua tia, Mimi. Começou a se aproximar da mãe (a iniciativa foi dele) que o recebeu até bem. Mas Julia (o nome dela) me parece ter sido dessas (raras) mulheres inaptas para a maternidade. Dizem que era alegre e brincalhona, menos mal, mas, fora os namorados, não queria ninguém pendurado em suas saias. John, a despeito de ser um semi delinquente juvenil (sic), só queria exatamente isso. Imagino o esforço do pré-adolescente, áspero, rebelde, experimentando o medo de trazer à tona uma doçura, que era secreta, na tentativa de conquistar a própria mãe. Nessa ocasião, Julia morre, atropelada na rua. Sem comentários.
John cresceu numa cidade portuária, industrial, culturalmente sem significado algum, na época. A saída foi música (rock, música maldita, emergente) e amigos. Um deles, extremamente talentoso, igualmente órfão de mãe, mostrou a John que era possível compor seus próprios riffs de rock n'roll. O resto é história. Mas há coisas que tendem a ser esquecidas e, uma delas, é a acidez que John desenvolveu - nada mais próximo de 'lemon' do que Lennon - e ele não era uma pessoa fácil. Discutir com ele era praticamente impossível, ele era bom demais nisso e conseguia desmoralizar qualquer um, em particular. Tinha a língua ferina. Teve que se retratar mais de uma vez com a opinião pública e com amigos. Casou-se com uma 'boa moça inglesa', os dois muito jovens ainda, que engravidou, talvez na tentativa de segurá-lo. Conheceu Yoko Ono que o fascinou porque - não sou psicólogo nem pretendo ser, mas aposto minhas fichas nisso - era parecida com a mãe. Fria, condescendente, via o tormento atrás da fachada de Beatle famoso e não dava a mínima. Julia costumava usar óculos sem lentes e coçar o olho através deles, desconcertando as pessoas. Para Yoko, que era 'artista plástica', a arte passava por aí. John talvez experimentasse com ela o mesmo sentimento que sua mãe lhe despertava. Quem sabe? Não importa mais.
Lennon morreu assassinado por uma das pessoas, mais uma, que ele conseguiu irritar. Deu azar do sujeito ser psicótico. Não há nada de pacífico nisso.
Eu estava ouvindo "I'm the Warlus", do Magical Mistery Tour, de 1967(!) e, mais uma vez, considerei a incrível poesia (eu e, pelo menos, Alan Ginsberg, que é para eu não ficar sozinho aqui), tão instigante e poderosa quanto o rock jamais foi. A melodia, sozinha, o arranjo - ainda é vanguarda, mais ainda, nessa época de clichês. O escritor está ali, com sua veia aberta, sem frescuras, truques ou arabescos. Parafraseando o velho Obi-uan-Kanobi (é assim que escreve?) quando fala pro jovem Luke Skywalker: "isso foi antes do Império, antes do advento do lado negro..."; essa malta de politicamente corretos que querem (e quase conseguiram) transformar o cabo das tormentas em piscina pré aquecida. À medida que o tempo passa, acredito que os livros de John Lennon ficarão mais visíveis como boa literatura. Infelizmente tenho que digerir a fase-Yoko. 'Give peace a chance'; legal, mas você, meu caro, não era esse homem.

Um comentário:

  1. Del, por incrível que pareça andei pesquisando sobre John; vi alguns programas nada convencionais na tevê a cabo. Em um desses programas, aparece o lado bem mal e irritante de Lennon, maltratando uns jovens fãs seus, respondendo mal aos jornalistas, inclusive sem paciência com Ioko- o que adorei- mal humorado pra carai, com vontade de bater no mundo. Embora não tenha me chocado completamente, apenas serviu para reforçar o que já sabia dele.
    Algo intrínseco, mas quem tem certa sensibilidade, acabaria por perceber.
    Não li o livro ao qual vc se referiu, mas em uma revista antiga minha, tinha uns trechos de escritos de Jonh, muito interessantes. Vou tentar achá-la- missão meio impossível. De qualquer forma, não domino o inglês e perco muito com isso. Consigo entender muitas coisas, mas perco as nuances que fazem a riqueza da língua, as entrelinhas. As traduções, com raras exceções, deixam a desejar, vc sabe. Há poucos Haroldos Campos, Paulos Leminsks.
    Então, contentar-me-ei com o que tenho.
    Mas, voltando ao John e sua insuportável mulher, bicho, gosto das músicas do cara, da voz do cara, das letras do cara e tb do cara, tá na cara. E vou continuar ouvindo as suas canções. E vou continuar odiando a yoko. Gostei do seu escrito aí, sô, e aprendi mais sobre ele. Vc tá fera. Linhás, viste o DVD do Bob Dylan?? Ele velho, hoje, falando e tocando a sua vida? Suas influências, seus ídolos, sua persistência. Bom. Gostei demais! Beijão! Vou ter uma reunião com um cara da Biblioteca, curador da exposição do Guimarães Rosa. Eta vida besta, meu deus!

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