14 junho 2006

Mais Leão, mais unicórnio

Recebi mensagens pensativas sobre meu último artigo, O Leão e o Unicórnio. Tentei responder e, quando vi, já tinha escrito outro artigo (argh) onde eu tento explicar minhas razões. Melhor publicar logo antes que eu me arrependa.
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O negócio do Carroll é que ele tinha uma lógica estranha. Ele pensava coisas diferentes sobre as palavras, sobre a língua, no caso o inglês. Se ele fosse brasileiro, ia ser da turma do Guimarães Rosa, só que ele foi além porque ele brincava com a semântica. A gente leu adaptações infantis do Alice no País das Maravilhas, que não é um livro infantil. Era pra ser, mas não é. O próprio Carroll achava que era. Mas não era. Carroll escreveu aquilo numa época que, paradoxalmente, era mais liberal que a de hoje, sob certos aspectos. Ele era protegido pela época em que viveu, a era vitoriana. Não tinha psicólogos, imprensa com psicólogos, críticos psicólogos, opinião pública massiva, mídia, TV, o escambau, essa turma de xerêtas profissionais. Hoje em dia sabemos que ele era, vamos dizer, uma espécie de tarado. Hoje em dia ele não ia escrever livro nenhum, ia virar um hacker na Internet (ia mesmo: tinha uma mente afiada pra lógica, matemáticas, xadrês, mecanismos diversos, coisas que fazem os hackers fodões, era muito criativo) e ia deixar as polícias internacionais, o pessoal dos direitos humanos, dos direitos das crianças, completamente malucos, tentando rastrear os sites que ele ia fazer sobre pornografia infantil. Ia ser o rei da pornografia infantil na rede. Talvez nem tanto porque ele nunca molestou criança nenhuma, o negócio dele era só ver nus, voyer. Ia ser hoje uma espécie de gênio do mal.

Ele escrevia coisas assim:

- Alice encontra o Gato de Cheshire (Cheshire é um lugar da Inglaterra), um gato que aparece e desaparece, às vezes de repente, às vezes aos poucos, deixando apenas um sorriso no ar. Alice pensa que já viu muitos gatos sem sorriso algum, mas nunca viu um sorriso sem gato. Alice pergunta ao gato qual caminho ela toma para sair dali. O gato responde que isso depende para onde ela quer ir. Alice fala que não importa, quer apenas sair dali. O gato responde que, nesse caso, qualquer caminho serve.

- Alice encontra o Cavaleiro Branco que diz que está compondo uma canção que, ele espera, trará lágrimas aos olhos das pessoas, senão... Alice pergunta: senão o quê? Senão ninguém chora, responde o cavaleiro.

- Outra vez, o gato aparece num jogo de cricket da Rainha de Copas que é uma megera louca que toda hora manda cortar a cabeça de alguém. Não dá outra: a rainha vê o gato e ordena: cortem-lhe a cabeça! O gato desaparece e deixa só a cabeça, rindo. Há uma discussão acalorada: o ponto de vista do carrasco é que ele não pode decapitar uma cabeça sem o corpo. O ponto de vista do rei é que qualquer coisa que possua ao menos uma cabeça, poderá ser decapitada. O ponto de vista da rainha é que se não lhe obedecerem a ordem, todas as cabeças vão rolar.

- Alice encontra o rato que lhe diz que vai contar uma história. Em inglês a palavra é "tale", uma história, uma lenda. Alice está sonolenta e observa a cauda do rato enquanto ele conta sua história. Cauda, rabo, em inglês é "tail", a mesma pronúncia de "tale". Alice ouve a história do rato que,
gráficamente, no livro, vai
tomando a forma de
uma cauda, rabo,
mais ou
menos
nesse
for-
ma-
to.

Carroll escreveu muitas coisas como essa nos dois livros que o fizeram famoso, Alice no País das Maravilhas (Alice in Wondeland) e Alice através do Espelho (Trough the Looking-Glass). Além disso existem poemas estranhos, sátiras sutis à poesia inglesa da época ( o Jaguadarte, tradução mestra de Augusto de Campos) em que os versos são formalmente rimados, o sentido é captado, as palavras soam familiares, mas são neologismos. Um deles, pelo menos, entrou, através de dicionários ingleses, para a língua oficial: galunfante, o ato de galopar em triunfo (não me lembro como era em inglês). Há quebra cabeças e charadas, variações brincalhonas de "nursery rhymes" ou seja, parlendas, poemas infantis ingleses, tradicionais. Há ainda uma série de insinuações perturbadoras sobre tempo e espaço, dimensões, coisas que a física moderna pesquisa com frequência, alucinógenos e, consequentemente, alucinações. A Lebre de Março é maluca porque Março é o mês em que as lebres inglesas entram no cio e ficam descuidadas frente aos caçadores. O Chapeleiro Maluco é maluco provavelmente porque os chapeleiros ingleses usavam uma cola, que era alucinógena, na fabricação de chapéus e, na verdade, alguns ficavam doidões. Além desses dois livros, Carroll escreveu outra obra prima: o longo e hilário poema "The Hunting of the Snark" (A Caça ao Turpente), sendo "Snark" uma palavra possívelmente formada da aglutinação de "shark" (tubarão) e "snake" (serpente). O livro é dividido em "eight fits", ou seja, em oito ataques. São oito ataques de riso, no mínimo.

Carroll, sem ele mesmo esperar, ficou famoso com sua Alice. Creio que não tinha pretensões de ser escritor mas, consagrado como tal, tentou um romance ´sério´, As Aventuras de Sylvie e Bruno. É um livro enfadonho, no geral. Levou longos dezesseis anos para escrevê-lo. É um livro escrito por Charles Lutwidge Dodgson, o nome verdadeiro de Lewis Carroll, ainda que o autor não pudesse mais se esquivar de seu alter ego e há muitas coisas de Carroll no livro. Como Dodgson ele ainda produziu alguns trabalhos matemáticos, de lógica, problemas de jogo de xadrês, uma série de retratos (era fotógrafo), a maioria de crianças, meninas. Algumas nuas.
Sabe-se que Dodgson era gago, tímido. Gagueira tem a ver com culpa. Foi nomeado diácono da Igreja Anglicana a certa altura da vida. Diácono, uma espécie de sub-pastor, sub-padre. Mas em Lewis Carroll você não encontra um único traço de cristianismo. Escreveu ainda alguns pequenos trabalhos, humorísticos, aplicando uma lógica formal sobre situações e criando resultados inesperados, evidenciando a fragilidade de algumas certezas corriqueiras que a gente tem sobre as coisas.

Agora, quanto a Karl Marx, que era um pensador-escritor da pesada, tenho pouco a dizer. Li pouco. O suficiente para notar a argumentação farta, precisa e lógica. A obra é extensa e pesada o suficiente para achatar um leitor desavisado. No entanto, tenho meu sensores (válvulas antigas, esquentam lentamente e apitam, luzes vermelhas piscando, lentas, no inconsciente) e percebo Marx como um alemão (só podia ser alemão) ´ingênio´, ou seja, um gênio ingênuo. Uma certa ingenuidade cristã permeia o manifesto escrito do ateu. Lembro-me que Paulo Francis, um leitor respeitável, de Marx inclusive, observou que Marx nunca levou em conta "o cerne incivilizado" do ser humano, que Freud apontou. Francis observa ainda que esse cerne é intratável. É inconsciente mas, nem por isso, menos atuante. A gente lê sobre o "cerne incivilizado" todos os dias, nos jornais. Marx não levava isso em conta, contava mais com a tentativa de uma elucidação possível sobre um processo econômico qualquer.

Imaginei então Carroll lendo, por exemplo, O Capital. Ele poderia, também por exemplo, pegar a teoria da mais-valia e, como dizem os paulistas, virá-la de ponta-cabeça. Poderia provar o contrário. Ou que não funciona assim, ou que trata-se de outra coisa. Seria, claro, uma brincadeira. Mas as brincadeiras de Carroll são de uma lógica afiada e demonstram, como eu já disse, que a lógica pode ser usada para provar qualquer coisa. Os enunciados de Marx baseiam-se em lógica formal. Ou em lógica humanitária, cristã. Ao famoso "a cada um, conforme suas necessidades; de cada um, conforme suas capacidades", Carroll poderia responder provando que tanto suas capacidades quanto suas necessidades são imensuráveis, não há como medi-las. Carroll era, é, um perigo.

Pensando nessas bobagens, eu quis fazer minha brincadeira particular e colocar ambos, Marx e Carroll, como adversários. Não eram, na verdade. Mas escrever é brincar e brincar é viver. Ainda tô vivo.

2 comentários:

  1. Anônimo12:57 AM

    Só posso dizer que ainda bem que você tá vivo, e esperar que você continue escrevendo, brincando, e nos mostrando todo esse outro lado desses caras, que você nos mostra com seu jeito próprio de olhar pra eles, e que eu, por exemplo, nem pensav, mas gostei de vê-los em seus escritos, andando de costas e tudo mais.
    Bjs
    Andy

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  2. Guga, assim não dá. Pena que não tenha tempo agora de fazer um comentário aprofundado do que acho disso tudo. Que eu acho , acho. Sua análise foi muito bem construída e elaborada. Ao ler, sabemos que se trata de uma pessoa que estuda/dou muito Carrol e que o admira profundamente. Houve um dia , um tempo que era fascinada por suas histórias e inclusive comprei o CD da Gal " O sorriso do gato de Alice " por causa disso. Mas, a gente se torna adulto e chato e quando vc pensa que entendeu a história , aí venm o Guga e coloca certas argumentações talvz irrefutáveis, o que faz com que a gente tenha que ler de novo, mesmo sem tempo para tal. Assim sendo, vou providenciar o livro, depois te conto o que achei nos dias de hoje. Quanto ao Marx, concordo com vc. Gênio ingênuo que acreditava que o ser humano pudesse ser o que não é. Pobre Marx, pobre Freud que enxergou um pouco mais além da mente humana. Pobre de mim e de vc que sabemos o que somos. Beijo. Depois te escrevo mais. DRI

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