05 junho 2006

O Leão e o Unicórnio

Voltei de Londres, a Londres das décadas finais do século XIX e trouxe, dessa viagem imaginária, uma foto na minha câmera digital. Procurei flagrar dois homens no momento em que cruzavam a mesma rua. Iam, como na vida, em direções e em calçadas opostas. Não sabiam da presença um do outro e não há registro histórico, que eu saiba, de que houvessem se conhecido. É historicamente possível de que tenham cruzado seus caminhos em alguma tarde, nas ruas de Londres da era vitoriana, mas é também improvável que isso tenha acontecido. No entanto eu fui lá checar e trouxe a foto, sabendo que o valor do meu testemunho é menos que zero. Meu interesse se deve ao fato de que os dois são adversários em potencial e esse mesmo antagonismo passa despercebido, inclusive por eles mesmos. São como dois generais que não se conhecem, mas cujos exércitos, se colocados lado a lado, entrarão em conflito imediato.
Um deles tem o porte mais arrogante e caminha com certa impaciência. Usa roupas sóbrias, comuns em cavalheiros do seu tempo, mas há ali um certo desprendimento próximo ao desleixo. Grossas sobrancelhas, espessa cabeleira e uma farta barba grisalha contribuem para a imagem de um homem passando a meia idade, sério, circunspecto, mas reconhecidamente pletórico em seu temperamento dificilmente controlado. O outro é, sob qualquer aspecto, um homem mais jovem e carregará essa juventude constante como um leve fardo durante toda a sua vida. Suas roupas também não revelam nenhuma intenção de elegância nem chamam a atenção de nenhuma outra forma. Se há alguma coisa digna de nota em seus trajes, essa coisa é uma discrição metódica, talvez conscientemente planejada. Seu passo é discreto, quase tímido e sua presença é anódina no fluxo contínuo dos demais pedestres. O rosto é infantil, assemelha-se ao de uma criança crescida, um tanto melancólico.
Nos dois homens pode-se deduzir o mergulho para dentro, ainda que em mares diversos. O primeiro está dentro de uma tempestade interior. Como um Netuno furioso comanda ondas gigantescas, planeja o futuro social dos povos enquanto caminha, mas não vê nada à sua volta; seus olhos parecem fixos em outros horizontes. O segundo está em lugares estranhos de suas próprias profundezas; ouve alguma música submarina, hipnótica; caminha e descobre ao seu redor as pequenas engrenagens quebradas, cotidianas, de uma lógica absurda e com elas constrói um mecanismo particular.
O primeiro é um alemão expatriado, seu nome é Karl Marx. O segundo é extremamente inglês, viajante mínimo em sua ilha natal, portador de um humor desconcertante e secreto, construtor de um aparelho semântico de precisão, de uma lógica estranhamente implacável; seu nome é Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido como Lewis Carroll.
Evidentemente Marx caminha do lado esquerdo da rua e Carroll à direita. Mas, devido ao ângulo de visão muito flexível que nossa época proporciona e ainda sabendo-se que no trânsito urbano inglês a esquerda funciona como direita e vice-versa, não temos meios de saber hoje - numa situação não marxista mas tipicamente carrolliana - quem está em qual lado.
O antagonismo entre Lewis Carroll e Karl Marx poderá parecer fictício, para não dizer inexistente. O filósofo alemão não estaria, na perspectiva de seus seguidores, na mesma categoria intelectual de um simples escritor de "literatura infantil". Mas é necessário lembrar o perigo, sempre presente, que as brincadeiras de Carroll representam ao ordenamento lógico da linguagem e, por extensão, à visão do universo real que se obtém manejando-se essa linguagem, qualquer linguagem. A dialética hegeliana, desenvolvida por Marx e potencializada por seu inegável gênio, confunde-se freqüentemente com a própria verdade a ser atingida ou a ser demonstrada. O poder convincente de Marx origina-se, em grande parte, numa lógica aparentemente irrefutável, cujas proposições - tese, antítese e síntese - são elementos ou estruturas dinâmicas também aparentemente verídicas em si mesmas. Carroll não prova nada, a não ser uma coisa: que a própria lógica, articulada com a precisão ortodoxa que seja, pode ser usada para provar qualquer coisa.
Quem já leu Marx, gostando ou não do que leu, notará a sobriedade na execução literária, a seriedade quase excessiva do ato de escrever. Essa característica, comum em obras do gênero, contrasta vivamente com a despretensiosa irresponsabilidade literária de Carroll. Marx, ateísta, causa impacto em mentalidades cristãs (que inclusive não se reconhecem como tal), no entanto a inquietação produzida pela leitura das duas ‘Alices’ de Carroll não tem igual e tem sido fonte inesgotável de análise. Críticos diversos notaram a "perturbadora crueldade" permeando as páginas de uma obra que se insere aparentemente na categoria de 'literatura infantil', ou a 'modernidade' que atravessa modismos e resiste ao tempo como leitura para adultos dos dias de hoje.
Marx é o revolucionário até a instituição da ordem que advoga e, a partir daí, é o conservador dessa mesma ordem. Engendrava uma grande revolução social, idealista, mas ele mesmo assumia a moral vitoriana vigente. Dodgson, politicamente conservador, era matemático mais ou menos ilustre, fotógrafo (de crianças, mas usou uma fórmula carrolliana para se explicar: “adoro crianças, exceto meninos”) e chegou a ser diácono da Igreja Anglicana. Tímido e gago foi ofuscado históricamente por seu alter ego, Lewis Carroll, o escritor, que está longe de ser conservador, tímido ou mesmo gago (se isso fosse possível). Pode-se mesmo especular que Dodgson foi criatura de Carroll e não o contrário. Individualista, vitalmente envolvido em atividades levemente marginais ou secretas, como sua obsessão com o significado das palavras, lógica e meninas, é o portador de uma revolução contínua do pensamento aplicado à linguagem, cujas últimas conseqüências podem ser letais a qualquer ordem. A revolução, em Carroll, é sutil e semânticamente faz eco com modernas teorias matemáticas do caos ou da física quântica. Menos historicamente e mais histriônicamente, Carroll jogou uma casca de banana no piso, já escorregadio, por onde passariam os pensadores ofertando suas argumentações em bandejas.

Nota – “O Leão e o Unicórnio” é o título de um dos capítulos do livro de Carroll, “Alice Através do Espelho”. O desenho acima (a foto que eu tirei), contraria minha afirmação que Marx e Carroll caminhavam em direções contrárias. Explico: Lewis Carroll, de vez em quando, caminhava de costas.

2 comentários:

  1. Diante do provável antagonismo entre Carrol e Marx não me convenço exatamente de que eles o tenham. Acho que são duas figuras célebres, intelectuais, que de alguma maneira, queriam virar o mundo de cabeça pra baixo.
    Tenho cá pra mim que o que Marx queria não foi entendido pelos que usaram a sua teoria nos mais diferentes âmbitos, seja na política, nos governos de esquerda, seja pelos que o odiavam tão mais ou igual ao Capital.
    Já Carrol nos trouxe um mundo antípoda, fantasioso e real ao mesmo tempo. E há os que o odiavam e odeiam e há os que o exaltam e há os que o não entendem.
    Talvez seja esse o meu caso. Alice seria eu? Você? E qual a maravilha do seu país?
    Coelhos loucos, cartas mágicas de baralho, a busca de seu ego, rainhas assassinas???
    E o mundo de Marx, seria possível? Caminhando à direita ou à esquerda do espelho do tempo ou da ideologia? Será que alguém realmente o entendeu??
    Será que se os dois caminhassem no mesmo passeio, se se olhassem, não se reconheceriam um no outro??
    Será que o país de Marx não seria o mesmo de Carrol, visto de outro ponto de vista?
    Não sei. Não tinha pensado nisso antes e o que escrevi foi saindo após a leitura de seu texto.
    Certamente vou relê-lo e possivelmente meu pensamento irá ser outro. mas aí vai ser tarde demais.
    Gostei, gostei muito de seu texto. E que venham todos os leões e todos os unicórnios do mundo, incluindo os coelhos negros. Beijo. DRI

    ResponderExcluir
  2. Anônimo6:59 PM

    umA PORCARIA que eu não intendiii nadaaaa dessa merda

    ResponderExcluir