O ônibus balançou, rodou sobre bueiros mal fechados e produziu um som metálico, alto. Cida olhou pela janela e viu passar, num adeus sorridente, o rosto da moça que anunciava um novo perfume, num cartaz gigantesco, fincado sobre a esquina da rua, acima do lote vago que há muito tempo estava assim - "tão vago como meu coração" – pensou ela, lembrando a frase boba de Joaquim e que ela, Cida, não conseguia esquecer.
Ali se levantou para puxar a cordinha e dar o sinal para saltar no próximo ponto, quase na esquina da rua que levava diretamente à sua casa, um quarteirão adiante. Esperou alguns segundos para que o passageiro ao lado se desse conta de que ela queria descer e afastasse os joelhos, dando passagem.
"Não obstante os pequenos obstáculos," - Cida recitou de cabeça, em silêncio - "obteremos, com nossa obscena obstinação, o obscuro objeto de desejo".
Joaquim escrevera essa frase num dos cadernos que ela deixara sobre a carteira, na primeira vez em que se encontraram, há alguns anos.
Viu o rapaz magro e levemente desengonçado, no meio dos outros estudantes que entravam na sala de aula. Ele estava batendo com uma caneta na palma das mãos, tentando fazer, no tapa, com que a caneta funcionasse. Daí ele notou o caderno dela, solto em cima do tampo da mesinha e, ainda sacudindo freneticamente a caneta, abriu o caderno, despreocupadamente, e começou a escrever alguma coisa.
Ela se lembrava de como havia se aproximado por trás dele e dito: "Ei! Esse caderno é meu." Ele a olhou sobre os ombros, virou-se, meio atrapalhado mas sorrindo e lhe disse que estava tendo dificuldades com aquela caneta mas que, por algum motivo, naquele caderno ela tinha funcionado.
"Olha aqui" - disse ele, mostrando a ela a página rabiscada - "ainda tá falhando um pouco, mas já dá pra ler. Esse caderno é seu, é?"
Cida tirou-lhe o caderno das mãos e disse calmamente: "Cê não vai escrever mais nada nesse caderno, cara."
Ela sorria quando se lembrava desses detalhes, sorria ao perceber como havia radiografado imediatamente o sujeito que, mais tarde, se apresentara como Joaquim. Percebera a admiração, nunca confessada, estampada nos olhos dele, na medida em que ela não se alterava com suas pequenas impertinências, achava divertida a lealdade inconsciente que ele lhe dedicara desde então, a forma como ele prestava atenção a tudo o que ela dizia. Gostava do poder que ele lhe outorgava sem saber, da possibilidade potencial, mas nunca utilizada, de manipular Joaquim como quisesse.
Guardou, por absoluta falta de outra idéia melhor, a frase escrita no caderno. Leu aquilo diversas vezes, desde então, e achava engraçado como a frase a ajudava em momentos nos quais não sabia bem como reagir, ou não sabia o que pensar.
Cida desceu do ônibus e caminhou com seus passos ritmados, como sempre, passando sob as copas das árvores que margeavam sua rua, até chegar em casa. Atravessou a sala, onde sua tia via uma reprise de novela na tv e apenas abanou a mão, em concentração total. Checou, na cozinha, o quadro de cortiça onde se penduravam as contas a pagar, abriu a geladeira e verificou as possibilidades para o jantar dali a pouco, parou na porta do banheiro e viu se as toalhas estavam em ordem para o banho e então foi para seu quarto. Fechou a porta e sentou-se na cama, mas se levantou quase que imediatamente, a imobilidade seria perigosa agora, e foi até o guarda-roupas.
Do lado interno da porta, que ela abriu, o grande espelho refletia seus gestos e ela se observou, enquanto escolhia roupas e começava a se despir. Viu seu próprio corpo magro, estranhamente nítido em sua palidez, refletido no espelho, destacando-se na penumbra que já invadia o quarto no fim do dia.
"A despeito de não ter peitos e apesar do peso mínimo..." – outra frase de Joaquim, quase uma descrição literal de si mesma, que ela deixava rodar em sua memória. Um artifício calculado para não pensar na outra coisa, mas sentia que estava prestes a ceder, que estava prestes a ir de encontro à questão central, a coisa que a atormentava em silêncio, dentro de seu coração. Ele estivera tão próximo, outra vez. Podia ver de novo suas mãos quietas, os gestos lentos de seus dedos tamborilando sobre os joelhos. Podia ver seu rosto de perfil, contra a luz da janela. Cida se perguntou, pela enésima vez, qual deus desgraçado a ferira de morte, em qual dia. Em qual momento descera sobre ela oferecendo seu inesperado cálice de veneno. E ela bebeu, muito mais do que gostaria. Porque o veneno direcionou seus olhos para aquele a quem ela não ousava olhar mais que o necessário, porque não confiava em seus próprios olhos, com medo de que revelassem a ele sua frágil súplica, a intensidade contida dentro de si, que poderia facilmente vazar através da traição desses seus olhos.
Hoje, beijara sua testa, ao sair, como já fizera outras vezes. Um beijo leve, tão difícil quanto representar uma farsa sem enredo ou fim, e tão necessário para manter essa mesma farsa. Essa farsa que, ao menos, mantinha a ela, Cida, circulando ao lado dele, no campus da universidade, nas calçadas do centro da cidade, nos cinemas, nos pequenos bares que freqüentavam ocasionalmente, no apartamento de Joaquim e em outros lugares – não fazia diferença, contanto que ele estivesse perto. "Até quando?", era a pergunta que ela não ousava responder.
Cida retirou do guarda-roupas uma grande camiseta e, assim vestida, se dirigiu para o banheiro. Nua, sob o barulhento chuveiro elétrico, observando as nuvens de vapor que umedeciam os ladrilhos, Cida murmurou, em surdina, enquanto traçava lentamente, com o dedo, um pequeno coração, no vapor condensado sobre as paredes de mosaicos coloridos:
"Não obstante os pequenos obstáculos... obteremos com nossa obscena obstinação... o obscuro objeto de desejo..."
Agora a frase adquirira seu sentido oculto, seu peso real, sua verdadeira face sem máscaras. Cida apagou, com as bordas da mão, o desenho do minúsculo coração e regulou a torneira para que a água caísse com maior volume e, tombando a cabeça para trás, as duas mãos imóveis, levemente apoiadas sobre os seios, deixou que a água batesse em seus lábios, queixo, pescoço, clavículas, ficando quieta assim por alguns momentos, esperando, talvez, que a água atingisse algum ponto dentro de si mesma, que aliviasse, que lavasse a dor, escondida lá dentro, no mapa mal traçado que ela chamava de "minha zona sentimental".
07 julho 2007
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Guga, juro que tô com raiva! Tô com raiva de ter que esperar não sei quanto tempo pra vc escrever mais um capítulo! Olha, presta atenção! Isso tá bom demais! Quero que essa história continue. Vc não tem o direito de me fazer esperar muito tempo, pq não sei quanto tempo vou ter e não quero morrer sem que termine esse romance.
ResponderExcluirADOREI ESSE CAPÍTULO! TÁ MUITO PRÓXIMO DO CORAÇÃO, ENTENDE, TÁ MUITO PRÓXIMO E MUITO FÁCIL DE SE APAIXONAR PELOS PERSONAGENS! ENTÃO, RECORRENDO À FALA DA CIDA: QUE DEUS DESGRAÇADO NÃO FAZ COM QUE VC TERMINE ISSO, HEIM?HEIM?
BEIJO. DRI
Concordo com a Dri, apesar de achar que morrer não tem nada a ver com o final do livro, na verdade só queria ver mais, e me "desgassta" esperar...Sei lá de repente tô num avião e não li o próximo, vai ser ruim demais!!!!!!!!!!
ResponderExcluirAndrea
Estava lendo o que escrevi e fiquei com o cabelo em pé. Escrevi algo, no final, assim: "... no mapa mal traçado de suas íntimas esperanças..." Como é que a gente pode dormir com uma frase dessas?
ResponderExcluirPra gente ver que escrever muito cansado é perigoso. Tive que mudar a frase, claro.
A quarta parte está a caminho.
Estou aguardando, como muito mais coisas eu aguardo, desde acho que sempre... Mas quero ler, esse pedaço seu Guga, com ou sem reforma, eu adoro ver em que estamos nos transFORMANDO e é todo dia, cara!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluiriGuga! Agora um ultimato: ou vc escreve mais um capítulo ou eu!
ResponderExcluirÉ isso! Bj. Dri
Tô angustiada, ruendo unhas, percorrendo lembranças passadas, recentes, ou mesmo as que nem vivi pra tentar esquecer isso aqui: só assim, quem sabe, eu consigo esperar pela parte 4...quem sabe?
ResponderExcluirBj Gugão...faz logo o 4 aí ouuuuu!