08 janeiro 2009

Adeus ao Zé

Saindo dos últimos dias de dezembro, quando a chuva desceu como cortina, contínua e fina, esburacando as ruas adjacentes - a rampa que meu automóvel sobe já não é mais a mesma, os pivetes estão molhados sob a chuva e os caminhões derrapam nas curvas fechadas que descem da Raja Gabaglia até a Barão. A chuva é um troço meio triste e veio um dia de sol, afinal, mas fiquei sabendo, só agora, do falecimento, em 2006, do meu antigo incentivador literário. José Maria Cançado. Ficamos amigos durante o ano em que convivemos esporadicamente - já tem muito tempo - e exercemos a amizade nos raros encontros subsequentes. Acho que a última vez que eu o vi foi no Bar Brasil, bebendo, solitário, sentado numa das mesas. Eu estava em outra mesa, com outros amigos. Chamei, disse que se sentasse conosco, mas ele recusou educadamente porque esperava alguém. Uma mulher. Vi quando ela entrou no bar, quarenta minutos mais tarde. Não a conhecia.

José Maria escreveu a biografia de Drummond, Os Sapatos de Orfeu e eu possuía um dos primeiros exemplares, autografado. Ele era modesto e me explicou que o livro era só uma tentativa de encaixar Drummond num contexto histórico, "mas pessoal", acrescentou. O livro, ainda bem, não tem nada de modesto.

Drummond não era o poeta preferido de José Maria, mas é historicamente importante e a cultura, como diria o Zé, precisa manter seus alicerces aparentes. E eu tive a honra de ser, lá pela casa dos vinte anos, um dos poetas preferidos do Zé Maria.

Ele me "descobriu" por acaso, quando eu comecei a procurar pela autora de um livro de contos que eu tinha comprado num sebo. Porque era mineira e estava em Belo Horizonte e porque o livro dela, O Olho Insano, era também insano e tinha uma qualidade literária insana. O nome da autora era Lucienne Samor e eu comecei, naquela época pré internet, a procurá-la pela cidade e vim conhecer parte da pequena tribo de escribas que se movia quase marginalmente por pequenas editoras, pequenas salas e escritórios também pequenos de gráficas obscuras. Conheci Lucienne, uma moça magra, de olhos inquietos, vivendo sua sina de talento genial e desconhecido. Avessa a elogios - mesmo porque elogios não enchem barriga -, me pediu dinheiro emprestado, que eu não tinha, mas arranjei pra ela, e nunca pagou, eheheh. Tudo bem. Mesmo. Tínhamos em comum o fato de sermos, nós dois, absolutamente inaptos para lidar, gerar ou gerenciar qualquer quantia em dinheiro. O dinheiro era - oh, deus, como fomos jovens - uma espécie de estorvo em nossas mãos.

Conheci o Zé Maria e mais alguns autores como o poeta negro Adão Ventura, o escritor Caio Fernando Abreu, que não era mineiro mas passava por lá e outros que não me lembro o nome, só os rostos.
José Maria se interessou de imediato por meus poemas e, naquele jeito tímido e atrapalhado, começou a me incluir na roda. Publicou um deles na extinta revista Inéditos, e não era, nem de longe, o nosso poema preferido, mas isso sempre existe: os caras que escolhem, o conselho editorial das revistas, sempre escolhe errado. Zé Maria se desculpou por isso, eu me lembro. Uma desculpa absolutamente desnecessária, eu disse. Através do Zé recebi a aprovação de um outro velho poeta e literato e por causa do incentivo do Zé fui ao Rio, mostrar meus trabalhos para Carlos Drummond e Paulo Mendes Campos. Foi o suficiente para me manter, até hoje, com a caneta (ou o teclado) perto das mãos.

Comentei depois com o Zé minha ida ao Rio e ele disse, resumidamente, que agora era comigo, que era uma questão de empenho e paciência. Só isso. Bem, não segui seu conselho e meu empenho é uma coisa quase ridícula.

E soube só agora, quase três anos depois, que o Zé morreu. Isso dá uma medida da minha distância dos meios literários. Não lamento essa distância, lamento apenas a ausência do Zé. Não posso mais mostrar meus poemas pra ele e não podemos mais conversar sobre, ah, qualquer coisa. Espero que não tenha sofrido. Espero que ele ainda exista em algum lugar, sei lá, que esteja esperando em algum ponto entre aqui e o infinito. Uma frasezinha de efeito duvidoso, mas o que não é duvidoso em literatura? A leste do Éden, véio, tudo de bom, nos vemos pela aí.

Um comentário:

  1. Ô, Guga, sinto pela morte do Zé, mas(egoisticamente) quem sabe não serviu para que você volte a escrever nesse blog e encontrar outro Zé por aí? Texto elegante, Guga. Beijo.

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