28 junho 2006


Novo soldado (ultima vez que uso esse desenho, juro!)

19 junho 2006


Lennon, em seu legitimo direto.

Lennon, em seu legítimo direto.

Outro dia eu estava procurando por um livro que eu tinha (agora sei que não tenho mais), Um Atrapalho no Trabalho, de John Lennon. Em inglês é A Spaniard in the Works. A tradução é de Paulo Leminski e o título capta bem o sentido geral, mas eu prefiro a do Millôr Fernandes que achou: Um Estranhol no Trabalho, que soa mais próximo do original que, na verdade, é intraduzível. A palavra ‘works’, no caso, pode significar trabalho ou máquina porque Lennon usou uma expressão antiga, (creio que do começo do século passado, Revolução Industrial), significando alguma coisa que se faz de errado com as máquinas e introduzindo um intruso estrangeiro no meio, um espanhol atrapalhado. Qualquer inglês percebe o trocadilho de imediato, a sonoridade semelhante e o sentido transformado. A gente tem que ficar deduzindo, claro. Eu mesmo pensei em coisas para o título como Uma Extranja (ou Extra Ana) em Grenajem, mas ficou tão bizarro que passou do ponto.
Pouca gente sabe que Lennon era um escritor. Ele próprio não pertencia a esse grupo. Nunca se levou a sério. Escrevia 'desde sempre' e, como ele mesmo disse, seus dois livros eram uma coletânea de coisas que ele rabiscava desde a escola secundária. Também admitia não ter paciência para uma obra de fôlego maior. Mas o que, afinal de contas, seria um fôlego maior? O livro de Lennon respira tão bem quanto na época em que surgiu, em meados da década de sessenta. Na verdade foram dois livros: o já citado A Spaniard in the Works e o primeiro, In His Own Write, título que é outro trocadilho, usando a expressão ‘in his own right’, que, em português, significaria algo como ‘em seu legítimo direito’. ‘In his own write’ tem a pronuncia semelhante mas quer dizer ‘na sua escrita particular’, algo assim. Ele ainda é autor de um terceiro volume, póstumo, Skywriting by the Word of Mouth. Esse eu não li, e talvez nem leia nunca, porque nele está a sombra irritante da Yoko Ono.
Depois de sua morte, John Lennon foi transformado numa espécie de ícone parecido com a pomba da paz. Lennon engano, ledo engano. Pra começar, ele próprio nunca teve isso, paz. John era órfão, na pior espécie de orfandade conhecida: foi abandonado pelos pais. Perder os pais já é uma experiência terrível pra qualquer criança; ser rejeitado pode ser pior. Por volta dos treze anos de idade soube que sua mãe morava mais ou menos perto de onde ele próprio morava, a casa de sua tia, Mimi. Começou a se aproximar da mãe (a iniciativa foi dele) que o recebeu até bem. Mas Julia (o nome dela) me parece ter sido dessas (raras) mulheres inaptas para a maternidade. Dizem que era alegre e brincalhona, menos mal, mas, fora os namorados, não queria ninguém pendurado em suas saias. John, a despeito de ser um semi delinquente juvenil (sic), só queria exatamente isso. Imagino o esforço do pré-adolescente, áspero, rebelde, experimentando o medo de trazer à tona uma doçura, que era secreta, na tentativa de conquistar a própria mãe. Nessa ocasião, Julia morre, atropelada na rua. Sem comentários.
John cresceu numa cidade portuária, industrial, culturalmente sem significado algum, na época. A saída foi música (rock, música maldita, emergente) e amigos. Um deles, extremamente talentoso, igualmente órfão de mãe, mostrou a John que era possível compor seus próprios riffs de rock n'roll. O resto é história. Mas há coisas que tendem a ser esquecidas e, uma delas, é a acidez que John desenvolveu - nada mais próximo de 'lemon' do que Lennon - e ele não era uma pessoa fácil. Discutir com ele era praticamente impossível, ele era bom demais nisso e conseguia desmoralizar qualquer um, em particular. Tinha a língua ferina. Teve que se retratar mais de uma vez com a opinião pública e com amigos. Casou-se com uma 'boa moça inglesa', os dois muito jovens ainda, que engravidou, talvez na tentativa de segurá-lo. Conheceu Yoko Ono que o fascinou porque - não sou psicólogo nem pretendo ser, mas aposto minhas fichas nisso - era parecida com a mãe. Fria, condescendente, via o tormento atrás da fachada de Beatle famoso e não dava a mínima. Julia costumava usar óculos sem lentes e coçar o olho através deles, desconcertando as pessoas. Para Yoko, que era 'artista plástica', a arte passava por aí. John talvez experimentasse com ela o mesmo sentimento que sua mãe lhe despertava. Quem sabe? Não importa mais.
Lennon morreu assassinado por uma das pessoas, mais uma, que ele conseguiu irritar. Deu azar do sujeito ser psicótico. Não há nada de pacífico nisso.
Eu estava ouvindo "I'm the Warlus", do Magical Mistery Tour, de 1967(!) e, mais uma vez, considerei a incrível poesia (eu e, pelo menos, Alan Ginsberg, que é para eu não ficar sozinho aqui), tão instigante e poderosa quanto o rock jamais foi. A melodia, sozinha, o arranjo - ainda é vanguarda, mais ainda, nessa época de clichês. O escritor está ali, com sua veia aberta, sem frescuras, truques ou arabescos. Parafraseando o velho Obi-uan-Kanobi (é assim que escreve?) quando fala pro jovem Luke Skywalker: "isso foi antes do Império, antes do advento do lado negro..."; essa malta de politicamente corretos que querem (e quase conseguiram) transformar o cabo das tormentas em piscina pré aquecida. À medida que o tempo passa, acredito que os livros de John Lennon ficarão mais visíveis como boa literatura. Infelizmente tenho que digerir a fase-Yoko. 'Give peace a chance'; legal, mas você, meu caro, não era esse homem.

14 junho 2006


Lewis vs Marx II

Mais Leão, mais unicórnio

Recebi mensagens pensativas sobre meu último artigo, O Leão e o Unicórnio. Tentei responder e, quando vi, já tinha escrito outro artigo (argh) onde eu tento explicar minhas razões. Melhor publicar logo antes que eu me arrependa.
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O negócio do Carroll é que ele tinha uma lógica estranha. Ele pensava coisas diferentes sobre as palavras, sobre a língua, no caso o inglês. Se ele fosse brasileiro, ia ser da turma do Guimarães Rosa, só que ele foi além porque ele brincava com a semântica. A gente leu adaptações infantis do Alice no País das Maravilhas, que não é um livro infantil. Era pra ser, mas não é. O próprio Carroll achava que era. Mas não era. Carroll escreveu aquilo numa época que, paradoxalmente, era mais liberal que a de hoje, sob certos aspectos. Ele era protegido pela época em que viveu, a era vitoriana. Não tinha psicólogos, imprensa com psicólogos, críticos psicólogos, opinião pública massiva, mídia, TV, o escambau, essa turma de xerêtas profissionais. Hoje em dia sabemos que ele era, vamos dizer, uma espécie de tarado. Hoje em dia ele não ia escrever livro nenhum, ia virar um hacker na Internet (ia mesmo: tinha uma mente afiada pra lógica, matemáticas, xadrês, mecanismos diversos, coisas que fazem os hackers fodões, era muito criativo) e ia deixar as polícias internacionais, o pessoal dos direitos humanos, dos direitos das crianças, completamente malucos, tentando rastrear os sites que ele ia fazer sobre pornografia infantil. Ia ser o rei da pornografia infantil na rede. Talvez nem tanto porque ele nunca molestou criança nenhuma, o negócio dele era só ver nus, voyer. Ia ser hoje uma espécie de gênio do mal.

Ele escrevia coisas assim:

- Alice encontra o Gato de Cheshire (Cheshire é um lugar da Inglaterra), um gato que aparece e desaparece, às vezes de repente, às vezes aos poucos, deixando apenas um sorriso no ar. Alice pensa que já viu muitos gatos sem sorriso algum, mas nunca viu um sorriso sem gato. Alice pergunta ao gato qual caminho ela toma para sair dali. O gato responde que isso depende para onde ela quer ir. Alice fala que não importa, quer apenas sair dali. O gato responde que, nesse caso, qualquer caminho serve.

- Alice encontra o Cavaleiro Branco que diz que está compondo uma canção que, ele espera, trará lágrimas aos olhos das pessoas, senão... Alice pergunta: senão o quê? Senão ninguém chora, responde o cavaleiro.

- Outra vez, o gato aparece num jogo de cricket da Rainha de Copas que é uma megera louca que toda hora manda cortar a cabeça de alguém. Não dá outra: a rainha vê o gato e ordena: cortem-lhe a cabeça! O gato desaparece e deixa só a cabeça, rindo. Há uma discussão acalorada: o ponto de vista do carrasco é que ele não pode decapitar uma cabeça sem o corpo. O ponto de vista do rei é que qualquer coisa que possua ao menos uma cabeça, poderá ser decapitada. O ponto de vista da rainha é que se não lhe obedecerem a ordem, todas as cabeças vão rolar.

- Alice encontra o rato que lhe diz que vai contar uma história. Em inglês a palavra é "tale", uma história, uma lenda. Alice está sonolenta e observa a cauda do rato enquanto ele conta sua história. Cauda, rabo, em inglês é "tail", a mesma pronúncia de "tale". Alice ouve a história do rato que,
gráficamente, no livro, vai
tomando a forma de
uma cauda, rabo,
mais ou
menos
nesse
for-
ma-
to.

Carroll escreveu muitas coisas como essa nos dois livros que o fizeram famoso, Alice no País das Maravilhas (Alice in Wondeland) e Alice através do Espelho (Trough the Looking-Glass). Além disso existem poemas estranhos, sátiras sutis à poesia inglesa da época ( o Jaguadarte, tradução mestra de Augusto de Campos) em que os versos são formalmente rimados, o sentido é captado, as palavras soam familiares, mas são neologismos. Um deles, pelo menos, entrou, através de dicionários ingleses, para a língua oficial: galunfante, o ato de galopar em triunfo (não me lembro como era em inglês). Há quebra cabeças e charadas, variações brincalhonas de "nursery rhymes" ou seja, parlendas, poemas infantis ingleses, tradicionais. Há ainda uma série de insinuações perturbadoras sobre tempo e espaço, dimensões, coisas que a física moderna pesquisa com frequência, alucinógenos e, consequentemente, alucinações. A Lebre de Março é maluca porque Março é o mês em que as lebres inglesas entram no cio e ficam descuidadas frente aos caçadores. O Chapeleiro Maluco é maluco provavelmente porque os chapeleiros ingleses usavam uma cola, que era alucinógena, na fabricação de chapéus e, na verdade, alguns ficavam doidões. Além desses dois livros, Carroll escreveu outra obra prima: o longo e hilário poema "The Hunting of the Snark" (A Caça ao Turpente), sendo "Snark" uma palavra possívelmente formada da aglutinação de "shark" (tubarão) e "snake" (serpente). O livro é dividido em "eight fits", ou seja, em oito ataques. São oito ataques de riso, no mínimo.

Carroll, sem ele mesmo esperar, ficou famoso com sua Alice. Creio que não tinha pretensões de ser escritor mas, consagrado como tal, tentou um romance ´sério´, As Aventuras de Sylvie e Bruno. É um livro enfadonho, no geral. Levou longos dezesseis anos para escrevê-lo. É um livro escrito por Charles Lutwidge Dodgson, o nome verdadeiro de Lewis Carroll, ainda que o autor não pudesse mais se esquivar de seu alter ego e há muitas coisas de Carroll no livro. Como Dodgson ele ainda produziu alguns trabalhos matemáticos, de lógica, problemas de jogo de xadrês, uma série de retratos (era fotógrafo), a maioria de crianças, meninas. Algumas nuas.
Sabe-se que Dodgson era gago, tímido. Gagueira tem a ver com culpa. Foi nomeado diácono da Igreja Anglicana a certa altura da vida. Diácono, uma espécie de sub-pastor, sub-padre. Mas em Lewis Carroll você não encontra um único traço de cristianismo. Escreveu ainda alguns pequenos trabalhos, humorísticos, aplicando uma lógica formal sobre situações e criando resultados inesperados, evidenciando a fragilidade de algumas certezas corriqueiras que a gente tem sobre as coisas.

Agora, quanto a Karl Marx, que era um pensador-escritor da pesada, tenho pouco a dizer. Li pouco. O suficiente para notar a argumentação farta, precisa e lógica. A obra é extensa e pesada o suficiente para achatar um leitor desavisado. No entanto, tenho meu sensores (válvulas antigas, esquentam lentamente e apitam, luzes vermelhas piscando, lentas, no inconsciente) e percebo Marx como um alemão (só podia ser alemão) ´ingênio´, ou seja, um gênio ingênuo. Uma certa ingenuidade cristã permeia o manifesto escrito do ateu. Lembro-me que Paulo Francis, um leitor respeitável, de Marx inclusive, observou que Marx nunca levou em conta "o cerne incivilizado" do ser humano, que Freud apontou. Francis observa ainda que esse cerne é intratável. É inconsciente mas, nem por isso, menos atuante. A gente lê sobre o "cerne incivilizado" todos os dias, nos jornais. Marx não levava isso em conta, contava mais com a tentativa de uma elucidação possível sobre um processo econômico qualquer.

Imaginei então Carroll lendo, por exemplo, O Capital. Ele poderia, também por exemplo, pegar a teoria da mais-valia e, como dizem os paulistas, virá-la de ponta-cabeça. Poderia provar o contrário. Ou que não funciona assim, ou que trata-se de outra coisa. Seria, claro, uma brincadeira. Mas as brincadeiras de Carroll são de uma lógica afiada e demonstram, como eu já disse, que a lógica pode ser usada para provar qualquer coisa. Os enunciados de Marx baseiam-se em lógica formal. Ou em lógica humanitária, cristã. Ao famoso "a cada um, conforme suas necessidades; de cada um, conforme suas capacidades", Carroll poderia responder provando que tanto suas capacidades quanto suas necessidades são imensuráveis, não há como medi-las. Carroll era, é, um perigo.

Pensando nessas bobagens, eu quis fazer minha brincadeira particular e colocar ambos, Marx e Carroll, como adversários. Não eram, na verdade. Mas escrever é brincar e brincar é viver. Ainda tô vivo.

05 junho 2006


O Leao e o Unicornio

O Leão e o Unicórnio

Voltei de Londres, a Londres das décadas finais do século XIX e trouxe, dessa viagem imaginária, uma foto na minha câmera digital. Procurei flagrar dois homens no momento em que cruzavam a mesma rua. Iam, como na vida, em direções e em calçadas opostas. Não sabiam da presença um do outro e não há registro histórico, que eu saiba, de que houvessem se conhecido. É historicamente possível de que tenham cruzado seus caminhos em alguma tarde, nas ruas de Londres da era vitoriana, mas é também improvável que isso tenha acontecido. No entanto eu fui lá checar e trouxe a foto, sabendo que o valor do meu testemunho é menos que zero. Meu interesse se deve ao fato de que os dois são adversários em potencial e esse mesmo antagonismo passa despercebido, inclusive por eles mesmos. São como dois generais que não se conhecem, mas cujos exércitos, se colocados lado a lado, entrarão em conflito imediato.
Um deles tem o porte mais arrogante e caminha com certa impaciência. Usa roupas sóbrias, comuns em cavalheiros do seu tempo, mas há ali um certo desprendimento próximo ao desleixo. Grossas sobrancelhas, espessa cabeleira e uma farta barba grisalha contribuem para a imagem de um homem passando a meia idade, sério, circunspecto, mas reconhecidamente pletórico em seu temperamento dificilmente controlado. O outro é, sob qualquer aspecto, um homem mais jovem e carregará essa juventude constante como um leve fardo durante toda a sua vida. Suas roupas também não revelam nenhuma intenção de elegância nem chamam a atenção de nenhuma outra forma. Se há alguma coisa digna de nota em seus trajes, essa coisa é uma discrição metódica, talvez conscientemente planejada. Seu passo é discreto, quase tímido e sua presença é anódina no fluxo contínuo dos demais pedestres. O rosto é infantil, assemelha-se ao de uma criança crescida, um tanto melancólico.
Nos dois homens pode-se deduzir o mergulho para dentro, ainda que em mares diversos. O primeiro está dentro de uma tempestade interior. Como um Netuno furioso comanda ondas gigantescas, planeja o futuro social dos povos enquanto caminha, mas não vê nada à sua volta; seus olhos parecem fixos em outros horizontes. O segundo está em lugares estranhos de suas próprias profundezas; ouve alguma música submarina, hipnótica; caminha e descobre ao seu redor as pequenas engrenagens quebradas, cotidianas, de uma lógica absurda e com elas constrói um mecanismo particular.
O primeiro é um alemão expatriado, seu nome é Karl Marx. O segundo é extremamente inglês, viajante mínimo em sua ilha natal, portador de um humor desconcertante e secreto, construtor de um aparelho semântico de precisão, de uma lógica estranhamente implacável; seu nome é Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido como Lewis Carroll.
Evidentemente Marx caminha do lado esquerdo da rua e Carroll à direita. Mas, devido ao ângulo de visão muito flexível que nossa época proporciona e ainda sabendo-se que no trânsito urbano inglês a esquerda funciona como direita e vice-versa, não temos meios de saber hoje - numa situação não marxista mas tipicamente carrolliana - quem está em qual lado.
O antagonismo entre Lewis Carroll e Karl Marx poderá parecer fictício, para não dizer inexistente. O filósofo alemão não estaria, na perspectiva de seus seguidores, na mesma categoria intelectual de um simples escritor de "literatura infantil". Mas é necessário lembrar o perigo, sempre presente, que as brincadeiras de Carroll representam ao ordenamento lógico da linguagem e, por extensão, à visão do universo real que se obtém manejando-se essa linguagem, qualquer linguagem. A dialética hegeliana, desenvolvida por Marx e potencializada por seu inegável gênio, confunde-se freqüentemente com a própria verdade a ser atingida ou a ser demonstrada. O poder convincente de Marx origina-se, em grande parte, numa lógica aparentemente irrefutável, cujas proposições - tese, antítese e síntese - são elementos ou estruturas dinâmicas também aparentemente verídicas em si mesmas. Carroll não prova nada, a não ser uma coisa: que a própria lógica, articulada com a precisão ortodoxa que seja, pode ser usada para provar qualquer coisa.
Quem já leu Marx, gostando ou não do que leu, notará a sobriedade na execução literária, a seriedade quase excessiva do ato de escrever. Essa característica, comum em obras do gênero, contrasta vivamente com a despretensiosa irresponsabilidade literária de Carroll. Marx, ateísta, causa impacto em mentalidades cristãs (que inclusive não se reconhecem como tal), no entanto a inquietação produzida pela leitura das duas ‘Alices’ de Carroll não tem igual e tem sido fonte inesgotável de análise. Críticos diversos notaram a "perturbadora crueldade" permeando as páginas de uma obra que se insere aparentemente na categoria de 'literatura infantil', ou a 'modernidade' que atravessa modismos e resiste ao tempo como leitura para adultos dos dias de hoje.
Marx é o revolucionário até a instituição da ordem que advoga e, a partir daí, é o conservador dessa mesma ordem. Engendrava uma grande revolução social, idealista, mas ele mesmo assumia a moral vitoriana vigente. Dodgson, politicamente conservador, era matemático mais ou menos ilustre, fotógrafo (de crianças, mas usou uma fórmula carrolliana para se explicar: “adoro crianças, exceto meninos”) e chegou a ser diácono da Igreja Anglicana. Tímido e gago foi ofuscado históricamente por seu alter ego, Lewis Carroll, o escritor, que está longe de ser conservador, tímido ou mesmo gago (se isso fosse possível). Pode-se mesmo especular que Dodgson foi criatura de Carroll e não o contrário. Individualista, vitalmente envolvido em atividades levemente marginais ou secretas, como sua obsessão com o significado das palavras, lógica e meninas, é o portador de uma revolução contínua do pensamento aplicado à linguagem, cujas últimas conseqüências podem ser letais a qualquer ordem. A revolução, em Carroll, é sutil e semânticamente faz eco com modernas teorias matemáticas do caos ou da física quântica. Menos historicamente e mais histriônicamente, Carroll jogou uma casca de banana no piso, já escorregadio, por onde passariam os pensadores ofertando suas argumentações em bandejas.

Nota – “O Leão e o Unicórnio” é o título de um dos capítulos do livro de Carroll, “Alice Através do Espelho”. O desenho acima (a foto que eu tirei), contraria minha afirmação que Marx e Carroll caminhavam em direções contrárias. Explico: Lewis Carroll, de vez em quando, caminhava de costas.