Talvez a gente tivesse que botar coisas como chuva, vento e mau tempo para criar, literalmente, um clima mais pesado no texto.
A máquina de soletrar, como Joaquim a chamava, era uma Olivetti verde, pequena e ágil e nossa datilógrafa oficial, Cida Velasques, estava sentada no seu tamborete, com as mãos febris digitando o discurso prolixo e tortuoso de Joaquim, que rodava em volta dela olhando para o chão, enfatizando as frases com as mãos, imerso na palinfrasia que ele chamava de “procriação literária” e que, uma vez iniciada, não controlava e Cida, sem pausar as mãos nem por um instante, repetia a intervalos, “dá um tempo, dá um tempo”.
O texto, uma história de puro terror, era estranhamente original na medida em que só continha chavões, os mais usados no cinema e em toda a literatura de gibis, misturando todas as entidades de pesadelo conhecidas, vampiros, lobisomens, almas penadas, mortos-vivos, extraterrestres, múmias, os “ígores”, corcundas ajudantes dos cientistas malucos, os próprios cientistas, gênios do mal e mocinhas indefesas sendo massacradas uma a uma através da história que começava com antigas maldições egípcias e caminhava alucinadamente para o apocalipse no futuro longínquo.
Estranhamente a história não tinha heróis e isso foi o que me chamou a atenção, enquanto eu ouvia, sentado no sofá daquele quarto pequeno, no pequeno apartamento de Joaquim, no vigésimo segundo andar, no centro da cidade. Intervi algumas vezes, quando, por exemplo, a múmia, com a “vingança estampada nos olhos”, atravessava o Mar Morto nadando nas profundezas. “Péra aí”, eu disse, “vamos seguir as regras. Múmias não nadam.” Joaquim parou um instante, reorganizando os pensamentos. “Não?”, perguntou. “Não me lembro de nenhuma múmia nadadora”, respondi. Joaquim, cruzando os dedos das duas mãos e estendendo os braços para a frente com as palmas viradas para onde eu estava, provocando múltiplos estalos das falanges, falanginhas e falangetas, admitiu: “tá certo, tá certo” e mudando o enredo, acrescentou Shriack, o Monstro do Mar Morto - teve que soletrar o nome : X.. R.. I.. etc, que Cida corrigiu: “S, H, R, I, A, C, K. Fica melhor.” - uma das maldições locais que já era milenar no tempo em que a múmia era humana e sobre o qual a mesma múmia, um antigo feiticeiro, tinha poderes. Invocando o monstro, a múmia designou-o como portador da Praga, outra maldição, que se abateria sobre os povos pacíficos do outro lado do mar, livrando-se assim da triste perspectiva de ser uma múmia ensopada quando emergisse nas “margens ocidentais”. “Por que ocidentais?”, perguntei. “Para realçar o conflito entre o oriente e o ocidente”, disse Joaquim. “Olha, o Mar Morto inteiro é oriente.” “É, mas qualquer lugar tem um lado ocidental e ninguém vai prestar atenção nessas coisas.”
Ninguém presta muita atenção nessas coisas, repeti em pensamento e, ainda assim, lá estava eu interessado no final da história e esperando a conclusão, torcendo para que Joaquim não perdesse o fio, a verve, como já vi acontecer em outras ocasiões. Mas ele parecia embalado no seu próprio ritmo e o conto, mal ou bem, caminhava a passos largos, passos de monstro.
Lá pelas cinco horas da tarde perguntei a Cida quantas páginas havíamos percorrido desde o meio dia, hora em que, com os últimos pedaços de uma pizza nas mãos, deixamos a cozinha para nos acomodar no minúsculo quarto; Cida em seu tamborete em frente à mesinha com a Olivetti e um maço de papéis em branco, eu sentado na única poltrona e Joaquim de pé, rodando pelo quarto, indo da janela até a porta, voltando para a janela e olhando para a cidade, gesticulando a mímica que seus monstros lhe inspiravam: os dedos crispados do seu lobisomem, o olhar alucinado do Vampiro das Estradas, o andar trôpego do morto-vivo que procurava a passagem do Hades nos subterrâneos da cidade. Quatorze páginas, na digitação impecável de Cida que muitas vezes escutava sentenças inteiras antes de colocá-las na devida ordem, costurando as falhas, alinhavando as pontas perdidas, destrinchando o novelo em um único e coerente fio de forma que quem lesse aquilo pudesse ter a impressão que se tratava de um conto.
O prazo para a entrega das três cópias exigidas terminava no dia seguinte. O concurso de contos para desenvolvimento de enredos de cinema, promovido pela faculdade de comunicação da Universidade onde Joaquim estudava, oferecia um pequeno premio em dinheiro aos contos vencedores, primeiro, segundo e terceiro lugares, além da publicação dos mesmos na revista literária do campus. Lá pelas seis Joaquim colocou o ponto final na sua história. As idéias ainda o atropelavam, mas o desfecho apareceu inadvertidamente e Cida não deixou que ele escapasse, argumentando que estava bom assim e não permitindo acréscimos. O apocalipse havia chegado e os monstros tomaram a terra. Nesse ponto Cida sugeriu a idéia salvadora: cada monstro poderia ser um político corrupto, um industrial inescrupuloso, um tirano sanguinário, “que também são todos clichês” e o conto na verdade seria uma metáfora sobre o fim da civilização. Joaquim parou e do canto onde estava olhou pra mim, piscando os olhos que ele mantinha exageradamente abertos entre as piscadelas, e murmurou: “Gênio!”
Queria imediatamente trabalhar com Cida na nova idéia mas ela veio com outro argumento, irrefutável: “Tenho que ir pra casa”, e se levantou, foi até a janela onde havia mais luz, tirou da bolsa uma pequena escova e ajeitou seus cabelos curtos, caminhou, ainda ajeitando os cabelos e atravessou a porta da cozinha, rodeando a mesa e entrando no minúsculo banheiro do outro lado. Joaquim estava de pé ao lado da máquina de escrever, olhando as folhas datilografadas, empilhadas ordenadamente sobre a mesinha. Olhava com interesse, mas não tocava nas folhas, como se aquilo fosse algo que ele acabasse de descobrir, jogado por ali.
“Como é que a gente vai fazer, cara? A gente vai ter que bater tudo de novo?” Fui até onde ele estava e peguei o maço de papéis. Li a primeira página e notei o trabalho soberbo de Cida, a leitura resistia ao meu ceticismo. Olhei para a janela e intimamente disse adeus à noite no bar da esquina. Sentei-me no tamborete e coloquei mais uma folha de papel na máquina. “Cê podia fazer uma coisa”, eu disse , “vai lá embaixo e compra umas cervejas”. Joaquim bateu nos bolsos das calças, “no money, man”. “Tá bem”, eu disse, “toma aqui” e estendi pra ele algumas notas. Cida saiu do banheiro, Joaquim disse: ”tô descendo junto com cê”; ela me beijou o alto da testa e saíram os dois pela porta rumo ao elevador.
Li o texto do princípio ao fim, ainda que rapidamente e ponderei a maldição que pesava sobre mim naquele momento: escrever uma segunda parte do mesmo conto, achando passagens históricas que se relacionassem com o que aqueles monstros estapafúrdios estavam fazendo. Não foi tão difícil, o que dá uma idéia de como a história humana, sob certo aspecto, não passa de uma sucessão de horrores variados. Pulei alguns milhares de anos e iniciei minha triste analogia no início do séc. XX, encaixando os personagens desastrosos que todos conhecem e que atravessaram as duas grandes guerras, as outras guerras menores, o holocausto, as tiranias espalhadas a torto e a direito, a grande depressão e por aí a fora. Meu maior problema foi com o lobisomem de Joaquim que era, definitivamente, um monstro simpático. Não tinha, pelo menos, a intenção de ser cruel, apesar de ser. Vagava pelas noites atormentado com sua dupla natureza sem outro objetivo que não o de resolver-se, dissipar seus próprios fantasmas etc. Um monstro de monólogos, shakespeariano, que amava sobretudo a noite e, sem poder prescindir disso, sofria por transformar aquilo que amava no palco de suas atrocidades. Uma frase, no seu único monólogo, fazia do lobisomem um personagem notável: “.. estou vivo, mais vivo do que os que vivem e vão morrer. E, para os que vão morrer, eu sou a morte.” (sic) O melhor que pude fazer com o lobisomem foi torná-lo um símbolo da barbárie latente dos povos, barbárie que desperta ao cair da noite, ou melhor, das bombas.
Joaquim voltou uma hora depois com algumas cervejas. “Demorei, cara, por que o ônibus da Cida demorou. Fiquei lá conversando com ela no ponto.” Colocou algumas cervejas no refrigerador da cozinha e voltou com uma delas e dois copos. Bebemos num silêncio repentino, a janela aberta como um ouvido no vento, captando os ruídos da cidade lá fora, o guincho de freios, alavancas, portas, buzinas dissonantes do final do dia, motores rosnando seu mau humor no tráfego que crescia na hora do rush. Joaquim parecia não ter mais nada a dizer sobre coisa alguma. Foi até a janela verificar alguma freada mais alta que se sobressaiu no ruído do trânsito lá embaixo. Ficou na janela um tempo, o tempo necessário para gritar “ô burrão!” pra alguma coisa nas ruas, sabendo, claro, que a coisa não ia ouvir. “Olha, cara, vou ver televisão no quarto. Se precisar me chama.”
Ele foi e eu fiquei a sós com meu parágrafo inicial, que era o que eu tinha até aquele momento. Ainda não havia chegado no monstro-Sheakespeare que, no texto de Cida e Joaquim, me aguardava algumas páginas depois. Ouvia os sons que vinham do quarto, Joaquim assistia algum desses programas de auditório onde todo mundo, num milagre de homogeneidade meio assustador, vira imbecil, sendo que muitos nunca mais desviram. Quando me levantei para pegar outra cerveja e passei pela porta do quarto vi que Joaquim dormia na posição que se acomodara para assistir ao programa na tv que, agora, já era outro.
Perto da meia noite, entre idas e vindas à geladeira, já tinha terminado minha parte. Estava cansado mas ainda assim deixei um bilhete para Joaquim: “O negócio tá pronto. Acho que produzimos algum tipo de aberração literária. O júri do concurso vai ter que queimar alguns neurônios extras, eu acho. Falta apenas passar a limpo. Vê se você dá um jeito nisso, em tempo hábil. Cê ronca igual uma capivara gorda. Qualquer coisa me liga.” Saí pela porta sem fazer barulho, peguei o elevador, passei pela portaria vazia àquela hora e fui trotando pela calçada, me desviando dos grupos de damas da noite que faziam ponto nas esquinas mais escuras do centro.
Acordei mais tarde que o costume no dia seguinte com o telefone tocando, lá pelas dez horas da manhã. “Alô? Alô? Acabei, cara. Passei a limpo e tudo. Mas tô sem grana pra tirar o xerox. Cê num tem aí não?” Joaquim sempre fala dois alôs ao telefone, pra início de conversa, não importando o que a outra pessoa diga, ou que responda ou não responda ao primeiro alô. “Passa aqui”, eu falei. Eu estava já sentado na mesa da cozinha, tomando meu café quando ele chegou, entrando pela porta dos fundos do meu apartamento que eu, precavidamente, já deixara destrancada depois que ele ligou.
09 abril 2007
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