29 janeiro 2009

A Máquina Maligna contra o Marasmo

Desenhos antigos às vezes são engraçados. A gente perde contato com eles e, quando vê de novo, acha que eles são mesmo engraçados. Quando foram feitos, não deram a impressão de que eram engraçados, apesar da intenção ter sido essa, e foram relegados ao velho "ostracismo das gavetas".

A história em quadrinhos não foi feita, mas ficou esse desenho do cara nervosinho que tinha a M.M.M., a Máquina Maligna contra o Marasmo, que ele ganhou na sorte, num jogo de pôquer contra um psicanalista bêbado. E ele acionava a máquina contra qualquer dificuldade, desde dores de dente às dificuldades de entender a conversa chatinha das estudantes da PUC. Digitava um nome qualquer, tipo "Chitãozinho e Xororó" e ajustava a alavanca num dos 5 níveis básicos.

A máquina realmente não fazia nada demais, só emitia sons de coisas explodindo e gritos de dor. Era só para aliviar os estressados, mas o psicanalista que a inventou percebeu que os pacientes estavam ficando viciados nela.

22 janeiro 2009

O ostracismo das gavetas (1)

Achei mais uma caderneta, mas não estava nas gavetas, estava no meio das roupas velhas no fundo da prateleira superior do armário. Eu costumo comprar essas cadernetas, caderninhos de papelaria de subúrbio, 70 centavos um, 1,65 reais o outro. Bloquinhos de papel vagabundo, de 12 x 6 cm, por aí.

Eu ando com esses troços, pretendo anotar telefones e recados, anoto, mas perco todos. Eu encho esses pequenos blocos de garranchos, desenhos e textos sem sentido. Escrevo à mão e, à medida em que vão ficando cheios, eu os troco por outros e, assim, tenho algumas dezenas de bloquinhos espalhados pelas gavetas. Às vezes acho algum do qual eu não me lembrava.

Não tenho I-Fode (é foda), notebuque ou coisa que o valha. Penso em comprar um, mas eles fazem tanta coisa que fico meio cansado em pensar nas possibilidades. Esses aparelhinhos são projetados para conexões, a palavra chave é conexão: com gentes, com seu e-mail, com telefones, com rss, feeds, com twiter, com o flickr - a aflição proveniente dessas práticas não me parece boa.

Quero a desconexão, cada vez mais, do mundo e da aflição tecnológica do mundo. Me equilibro parcamente no meu próprio ostracismo e meus velhos bloquinhos de anotações são o espelho dessa minha tendência de ostra fechada, ou fechando-se. E ainda, rebelde como o adolescente meio idiota que eu fui, com o fôdas ligado.

Mas achei esse bloquinho, do qual não me lembrava e, olhando suas páginas minúsculas, achei alguns textículos mirrados (assim mesmo, com "x"). De vez em quando vou postar um textículo desses (porque acho eles engraçados), inaugurando essa série que eu chamo, meio pomposamente, de "O ostracismo das gavetas". Quem sabe o título sirva para dar mais importância ao que era apenas para ser literatura de traças. Ié, ié, quem sabe.

Caderneta Apontamentos
Espiral 1/6
Contém: 40 folhas
Formato: 72 x 105 mm
pág.6:

Eu tinha quarenta e noves fora, anos sem pressa, quando o azul vitalício de um céu junino estabeleceu limites para meus peidos: ao norte, o mais nefasto; a leste o súbito peido das manhãs; a oeste o peido crepuscular, do silêncio sob as cobertas; ao sul o sulfuroso peido alucinado dos trovões.
Quando defini essas coisas, depois de uma noite inteira de troglodismos sem sentido - eu estava tentando quebrar, sem sucesso, a porta do cofre - já era de manhã e alguém, que não sei quem, ligou. Três tristes trins foram expelidos pelo aparelho, peidei em uníssono, no esforço para me levantar do chão, da ressaca, e atender. "Alô?", mas alguém, que não sei quem, desligou.

15 janeiro 2009

Um Batman muito bobo

Tenho lido, aqui e ali, elogios ao último Batman do cinema. Aqui na rede há um coro de embasbacados, ali na imprensa, mais ainda. Coisas elogiosas demais sobre o ator, o personagem gay do Balacobaco Mountain , que faz o Coringa e que morreu logo depois, a atuação magnífica etc. É inverossímel, mesmo num filme de fantasia. Ninguém coloca bombas em hospitais inteiros, em barcaças cheias de gente e de guardas armados e controla tudo sozinho e à distância. Bomba é um negócio meio complicado, sabe? Precisa de pessoal técnico e especializado para instalar e acionar.

O Coringa anda sozinho e costuma matar seus parceiros (a primeira cena do filme). Ou seja, qualquer meliante relativamente esperto ia pensar duas vezes antes de se associar ao Coringa, porque as notícias correm e os bandidos logo logo perceberiam que o Coringa não é confiável. Associações criminosas (ou qualquer outra) têm, necessariamente, que promover uma confiança mínima entre seus membros para poder funcionar direito. Mas o Coringa consegue fazer coisas que nem uma equipe bem treinada consegue. Encher de bombas hospitais e barcas. Treinar cães. Foi ajudado, claro, pela equipe de produção do filme, seus únicos asseclas. Isso estraga qualquer filme. Quando você percebe que o personagem é ajudado, amparado, paparicado pelo diretor do filme, pela equipe técnica, pelo roteirista, o filme vira propaganda. Propaganda pessoal do diretor.

E o Batman é um babacão, que investe milhões de dólares em tecnologias sem sentido para fazer frente ao palhaço genial. E não consegue, ou quase isso. O Batman, que era pra ser um ente das sombras, é transparente como uma calcinha de seda e é completamente previsível em sua rigidez mental - um soldado burro, cheio de pruridos que escorrem como gotas de água contra o guarda-chuva de aço do Coringa. E que raio de voz é aquela, de onde eles tiraram a idéia daquela voz que parece a de um sujeito sentado num vaso sanitário e fazendo força para soltar algo mais além da voz? E desde quando o Morgan Freeman tem cara de cientista? E em qual maldita fragilidade mental se apoiam os princípios morais do Harvey Dente de cobra, pra ele virar um fascínora de uma hora pra outra? Só porque ficou feioso como Duas Caras? Só porque seus planos não deram certo? Que troço mais pitizento, um histerismo de criança mimada. A mensagem subliminar é que o bem é uma opçãozinha frágil demais. O Batman é frágil demais, o comissário Gordon é frágil demais. Só o Coringão tem poder. E é, sem muita discussão, um cara muito nojento.

Fiz uma pergunta para um amigo meu, na época do Sin City: quantas balas são necessárias para matar um personagem de Sin City? Varia muito, de 1 a 457 balas, conforme o capricho do diretor. No velho Matrix era: quantas balas são necessárias para se acertar um alvo? Também varia, de 1233 a 3720, também conforme o estardalhaço planejado da cena. A pergunta para o filme do Batman é: quantos ajudantes você precisa para fazer o que o Coringa fez no filme? A resposta é: você precisa só da equipe de produção do filme.

Bah, o Batman é mais um bestalhão nesse filme. Ainda não conseguiram um diretor à altura. Esses diretores de cinema precisam de uma temporada no Asilo Arkhan, ou talvez de uma certa, hã..., cultura humanística.

08 janeiro 2009

Adeus ao Zé

Saindo dos últimos dias de dezembro, quando a chuva desceu como cortina, contínua e fina, esburacando as ruas adjacentes - a rampa que meu automóvel sobe já não é mais a mesma, os pivetes estão molhados sob a chuva e os caminhões derrapam nas curvas fechadas que descem da Raja Gabaglia até a Barão. A chuva é um troço meio triste e veio um dia de sol, afinal, mas fiquei sabendo, só agora, do falecimento, em 2006, do meu antigo incentivador literário. José Maria Cançado. Ficamos amigos durante o ano em que convivemos esporadicamente - já tem muito tempo - e exercemos a amizade nos raros encontros subsequentes. Acho que a última vez que eu o vi foi no Bar Brasil, bebendo, solitário, sentado numa das mesas. Eu estava em outra mesa, com outros amigos. Chamei, disse que se sentasse conosco, mas ele recusou educadamente porque esperava alguém. Uma mulher. Vi quando ela entrou no bar, quarenta minutos mais tarde. Não a conhecia.

José Maria escreveu a biografia de Drummond, Os Sapatos de Orfeu e eu possuía um dos primeiros exemplares, autografado. Ele era modesto e me explicou que o livro era só uma tentativa de encaixar Drummond num contexto histórico, "mas pessoal", acrescentou. O livro, ainda bem, não tem nada de modesto.

Drummond não era o poeta preferido de José Maria, mas é historicamente importante e a cultura, como diria o Zé, precisa manter seus alicerces aparentes. E eu tive a honra de ser, lá pela casa dos vinte anos, um dos poetas preferidos do Zé Maria.

Ele me "descobriu" por acaso, quando eu comecei a procurar pela autora de um livro de contos que eu tinha comprado num sebo. Porque era mineira e estava em Belo Horizonte e porque o livro dela, O Olho Insano, era também insano e tinha uma qualidade literária insana. O nome da autora era Lucienne Samor e eu comecei, naquela época pré internet, a procurá-la pela cidade e vim conhecer parte da pequena tribo de escribas que se movia quase marginalmente por pequenas editoras, pequenas salas e escritórios também pequenos de gráficas obscuras. Conheci Lucienne, uma moça magra, de olhos inquietos, vivendo sua sina de talento genial e desconhecido. Avessa a elogios - mesmo porque elogios não enchem barriga -, me pediu dinheiro emprestado, que eu não tinha, mas arranjei pra ela, e nunca pagou, eheheh. Tudo bem. Mesmo. Tínhamos em comum o fato de sermos, nós dois, absolutamente inaptos para lidar, gerar ou gerenciar qualquer quantia em dinheiro. O dinheiro era - oh, deus, como fomos jovens - uma espécie de estorvo em nossas mãos.

Conheci o Zé Maria e mais alguns autores como o poeta negro Adão Ventura, o escritor Caio Fernando Abreu, que não era mineiro mas passava por lá e outros que não me lembro o nome, só os rostos.
José Maria se interessou de imediato por meus poemas e, naquele jeito tímido e atrapalhado, começou a me incluir na roda. Publicou um deles na extinta revista Inéditos, e não era, nem de longe, o nosso poema preferido, mas isso sempre existe: os caras que escolhem, o conselho editorial das revistas, sempre escolhe errado. Zé Maria se desculpou por isso, eu me lembro. Uma desculpa absolutamente desnecessária, eu disse. Através do Zé recebi a aprovação de um outro velho poeta e literato e por causa do incentivo do Zé fui ao Rio, mostrar meus trabalhos para Carlos Drummond e Paulo Mendes Campos. Foi o suficiente para me manter, até hoje, com a caneta (ou o teclado) perto das mãos.

Comentei depois com o Zé minha ida ao Rio e ele disse, resumidamente, que agora era comigo, que era uma questão de empenho e paciência. Só isso. Bem, não segui seu conselho e meu empenho é uma coisa quase ridícula.

E soube só agora, quase três anos depois, que o Zé morreu. Isso dá uma medida da minha distância dos meios literários. Não lamento essa distância, lamento apenas a ausência do Zé. Não posso mais mostrar meus poemas pra ele e não podemos mais conversar sobre, ah, qualquer coisa. Espero que não tenha sofrido. Espero que ele ainda exista em algum lugar, sei lá, que esteja esperando em algum ponto entre aqui e o infinito. Uma frasezinha de efeito duvidoso, mas o que não é duvidoso em literatura? A leste do Éden, véio, tudo de bom, nos vemos pela aí.