27 julho 2006

Allen Ginsberg


Allen Ginsberg

Para Allen Ginsberg (1926-1997)

As vozes americanas estão caladas
“Quais vozes?” - dirão, dentro dos desertos
os filhos da antiga natureza.
“Quais vozes?” - dirão, dentro dos metrôs
os eleitos
correndo nos trens elétricos.

Ginsberg (um outro Withman,
cientes um do outro
em todas as prateleiras públicas)

O peixe celacanto
desaparecido no fulgor da aurora
redivivo no apartamento
e nas paredes dos quartos impossíveis
e incendiando a imaginação da estrela
e configurando na terra a estirpe
dos que não tem amigos
apenas o resíduo dessa ilusão.

Assim pesado, dentro do espaço da moldura.
Ali parado, no cotovelo que sustenta o punho
que sustenta a mão e a cara triste.
Ali completo, por um segundo.
Ali e só ali, alívio.
Ali e só ali, babá
da criança que, segundo Yeats,
se arrastou para nascer
como a Besta, em Belém.

Mudo, no silêncio, e loquaz
pela possibilidade nociva do homem
que, por exemplo,
despenca das alturas do edifício
e passa por vidraças em formação geométrica
onde pessoas tristes, dentro dos quartos
o observam na queda
por milésimos de segundo.

Fantasmas calados aparecem
na extremidade da rua
como premonições de que um dia
todos nós nos encontraremos.

Foi-se o alto poeta beat,
besta demasiado rouca
anta, demasiado vil
para o país Brasil,
abaixo do hemisfério isolado
da sua influência.

Seu medo era o medo geral
do poeta, do judeu, da gentalha
e o dilema: Dylan Thomas:
a escrita que foi falha.

20 julho 2006


Empregadas mortas

Empregadas mortas

Rapaz, rapaz.. dia virá, quando as empregadas mortas se encontrarem atras da porta, sussurrando sobre os ladrilhos da cozinha: que não eram ninguém e que ninguém as ouve. O menino, que uma das babás recorda agora, com os olhos fixos no interior da casa, esse homem quase grisalho que já foi sua criança, seu pequeno, indefeso peralta, passa por ela sem atinar que o movimento súbito do vento na porta da cozinha se deve ao deslizar continuo do espectro que anda junto às paredes e se reflete, com um cintilar estranho e mínimo na superfície espelhada dos azulejos.

08 julho 2006


Alguma Memoria I

Alguma Memória I

Acredito em deuses arcaicos, roupas de baixo e no uniforme escolar. As moças que andavam com eles, cinza, verde e branco; a bandeira desfraldada de uma juventude ímpar; aqueles anos onde a gente era jovem também e havia sonho - sonho nos olhos, sonhos nas mãos – e elas, as moças, apertavam os cadernos e livros contra o peito juvenil; a gente era isso, juvenil, e nada podia derrubar nossa torre, erguida sobre a ruína das ruas.
No pátio descampado daquele colégio eu virava a mesa, andava sem direção, matando aula e ia até a cantina. Perseguia, mesmo em pensamento, a imagem de Norminha e, se ela estivesse na cantina - e com certeza estaria - eu, por outro lado, estaria do outro lado das vidraças, o sol da tarde pelas costas e minha sombra no vidro, emoldurando a imagem da menina magrela que usava um blusão Lee sobre o uniforme.
Eu fumava de vez em quando, passeando na alameda do colégio, vindo da escuridão do pátio interno que ficava sob o imenso bloco de cimento que comportava as salas de aula. Eu escrevia alguma coisa nos meus cadernos, não importando a matéria escolar que havia neles. No de matemática havia poesia, idem no de geografia, e mais outros que não me lembro - estão todos soterrados no tempo.
Helena passava, subindo a rampa. Não me via e olhava sempre para frente, ligeiramente para o alto, subindo a rampa que ia dar nas salas de aula onde ela lecionava. Lições que eram obra do acaso; uma história que não era a nossa; uma mulher que entrava na sala de aula como a sacerdotisa que entra num templo antigo. Uma sacerdotisa antiga do Egito, cogito, uma deusa antropomórfica que desceu, pisou no meio do colégio estadual numa hora em que ninguém viu - a gente estava em casa, dormindo. Eu a seguia com os olhos assim como seguia cada passo com os ouvidos e guardava minhas mãos no bolso para que elas (mãos) não me traíssem, fazendo seus sinais de muda timidez. Viaja, nessas tardes, na memória, meu coração de antanho.