Joaquim abre a porta e entra assoviando alto, as duas mãos, os dois dedos mínimos, na boca. Dá dois passos dentro da minha cozinha, fica parado e grita:
"Ô! Ô! Cheguei! Já cheguei!"; assovia de novo mais umas duas vezes, bate palmas, "Ô! Ó eu aqui! Cheguei!".
O fato de eu estar visível, a poucos metros de distância, sentado na mesa da cozinha, olhando para ele, não interfere na sua performance. No meio das palmas ele percebe que eu estou logo ali e muda o ritmo, improvisando um samba, enquanto caminha na minha direção:
"Já acordô, acordô/ tomando seu cafezinho/ sentadinho na cozinha/ vai comendo o biscoitinho, ê ôôô, ê ôôô...”
Mantenho meu silêncio, não há nada que eu possa fazer. Quando ele finalmente para na minha frente eu arrisco:
"É, deu pra notar que você chegou..."
Ele sorri, imune à ironia. Está animado, mas isso é uma redundância, em se tratando de Joaquim. Enquanto dou mais um gole no café, observo sua ginástica para se desvencilhar de sua incrível bolsa a tiracolo.
Joaquim usa uma dessas bolsas de lona, enorme, cuja alça poderia circundar duas vezes seu corpo. Ele a enrola no pescoço e passa pelos ombros. A bolsa fica pendurada atrás, na altura dos rins, ou seja, na posição mais difícil para se manusear. Ele sempre tenta abrir a bolsa nessa posição impossível e, quando percebe que não dá, passa a se desvencilhar da alça, num processo indisciplinado de tentativa e erro, como um prisioneiro que tenta se libertar das cordas que o mantiveram amarrado por um longo tempo. Sempre me pergunto como ele consegue se amarrar desse jeito. O processo todo dá a pausa necessária para que eu termine meu café. Finalmente, com o cabelo despenteado pelas inúmeras passagens da alça sobre a cabeça, ele se senta em minha frente, com a bolsa no colo.
“Ta tudo aqui, ó”.
Dito isso, se inclina sobre a mesa e escolhe minuciosamente dois ou três biscoitos de maizena que estão no prato, junto com o pão. Eu o observo pacientemente enquanto ele segura cada biscoito contra a luz que vem da janela e os examina de um lado e do outro.
“Joaquim, todos os biscoitos são iguais”.
“Certo, certo. Mas alguns são mais iguais que os outros”.
“Isso aí é Millôr Fernandes quem disse. Mas não sobre biscoitos”.
“Eu sei”.– Joaquim ainda está olhando para os biscoitos na mão – “Todo mundo procura sempre as coisas que são diferentes. Eu não. Eu, agora, quero ver se consigo achar as coisas que são iguais, sacou? Tudo que for igualzinho...”
“OK, tá bom, deixa pra lá. Só queria saber”.
Joaquim morde um biscoito - “Cê me empresta sua xícara aí”.
“Pega uma ali no armário”.
“Naaa... me empresta essa aí mesmo”.
Eu me levanto, pego uma xícara no armário e, quando volto, ele já está com a minha xícara, na qual despeja um pouco de café. Eu me sento, com a xícara limpa e me sirvo mais um pouco, também.
“E aí, cadê o texto?”, pergunto.
Ele deposita a xícara na borda da mesa, um quarto dela está pra fora do limite do tampo. Eu estendo o braço e puxo a xícara para uma posição menos perigosa enquanto ele abre sua enorme bolsa e retira de lá um maço de papéis surpreendentemente ordenados, envoltos com cuidado por um plástico transparente.
“Cê sabe quantas páginas são?” – pergunto.
“Vinte e três. Fora a página do título e a introdução”.
“Que introdução"?
“Peguei um parágrafo que você escreveu e botei como introdução, ué”.
“Vinte e três. Fora a página do título e a introdução”.
“Que introdução"?
“Peguei um parágrafo que você escreveu e botei como introdução, ué”.
Eu não estava, no momento, disposto a abrir a papelada e inspecionar o resultado geral.
“A Cida sabe desse negócio de introdução"?
“Foi ela que sugeriu, cara. Liguei mais cedo pra ela, li a sua parte pra ela e ela sugeriu botar a introdução; o título, inclusive”.
“Sei”.– me sinto mais tranqüilo com a intervenção de Cida – “E qual título, afinal, que vocês puseram"?
Joaquim lê através do plástico: “Um hiato no inferno”. E acrescenta: “Suas palavras, cara, a Cida gostou desse negócio que cê escreveu”.
“OK” – eu digo – “se a Cida falou, tá falado”.
“A Cida sabe desse negócio de introdução"?
“Foi ela que sugeriu, cara. Liguei mais cedo pra ela, li a sua parte pra ela e ela sugeriu botar a introdução; o título, inclusive”.
“Sei”.– me sinto mais tranqüilo com a intervenção de Cida – “E qual título, afinal, que vocês puseram"?
Joaquim lê através do plástico: “Um hiato no inferno”. E acrescenta: “Suas palavras, cara, a Cida gostou desse negócio que cê escreveu”.
“OK” – eu digo – “se a Cida falou, tá falado”.
Percebo que Cida é uma das poucas pessoas a quem Joaquim ouve, mesmo que ele não saiba disso. Conversamos mais um pouco e lembro a Joaquim que o prazo para a entrega do conto termina hoje, às quatro horas, e que ele ainda tem que tirar as cópias e ir, de ônibus, até o campus, fazer a inscrição. Ele se demora mais um pouco por ali enquanto eu busco algum dinheiro no quarto.
“Acho que isso aqui vai dar” – eu digo, e entrego pra ele algumas notas que ele enfia no bolso traseiro, sem contar.
“Falou, cara”.
Antes de sair ele para na porta da cozinha e vira-se, os dois indicadores fincados no alto da própria cabeça:
“Agora é o seguinte: o velho pensamento positivo, cara. Vê se esquenta esse pé frio chulezento desgraçado que ocê tem”.
Deixa a porta da cozinha aberta e, enquanto eu a fecho, ouço seus passos pulando as escadas do prédio, para baixo, em direção à rua.